sábado, 16 de agosto de 2008

FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta; Tradução: E

Eis que, há mais de dois séculos no nossa cultura, a semelhança deixou de formar, no interior do saber, uma figura estável, suficiente e autônoma. A época clássica a mandou embora: Bacon, de início, depois Descartes instauraram, para um tempo do qual não saímos, uma ordem de conhecimentos em que a similitude pode ter apenas um lugar precário e provisório, no limite da ilusão... 10
Atualmente, o semelhante é tão alheio ao nosso saber, tão misturado aos jogos solitários da percepção, da imaginação e da linguagem, que facilmente esquecemos eu ele tenha podido ser, e por muito tempo, uma forma de saber positivo. 11
Mas é preciso nos determos por um instante na própria linguagem, nos signos dos quais ela é formada: na maneira pela qual esses signos remetem ao que eles indicam... O tamanho da mão de um homem, é a imagem de seu vigor. Mas essa imagem apenas é signo na medida em que é sustentada pelo conhecimento de um encadeamento constante. 22-23
O filósofo não tem papel na sociedade. Não se pode situar seu pensamento em relação ao movimento atual do grupo. Sócrates é um excelente exemplo: a sociedade ateniense pôde apenas lhe atribuir o papel subversivo, seus questionamentos não podiam ser admitidos pela ordem estabelecida. 34
Poderíamos dizer que há duas formas de estruturalismo: a primeira é um método que permitiu seja a fundação de certas ciências como a lingüística, seja a renovação de algumas outras como a história das religiões, seja o desenvolvimento de certas disciplinas com a etnologia e a sociologia... O segundo estruturalismo seria uma atividade através da qual os teóricos, não especialistas, se esforçam para definir as relações atuais que podem existir entre tal e tal elemento de nossa cultura, tal ou tal ciência, tal domínio prático ou tal domínio teórico. 57
A história que não é estrutura, mas vir a ser; que não é simultaneidade, mas sucessão; que não é sistema, mas prática; que não é forma, mas esforço incessante de uma consciência retomando a si mesma e tentando se ressarcir até o mais profundo de suas condições; a história não é descontinuidade, mas longa paciência ininterrupta. 86
O saber não é uma soma de conhecimentos – pois destes sempre se deve poder dizer se são verdadeiros ou falsos, exatos ou não, aproximativos ou definidos, contraditórios ou coerentes; nenhuma dessas distinções é pertinente para descrever o saber, que é o conjunto dos elementos (objetos, tipos de formulações, conceitos e escolhas teóricas) formados a partir de uma só e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária. 110
A extrapolação epistemológica não se confunde com a análise (sempre legítima e possível) das estruturas formais que podem caracterizar um discurso científico. Mas ela permite supor que, para uma ciência, bastam essas estruturas para definir a lei histórica de seu surgimento e desenvolvimento. 113
O conhecimento confia à experiência o encargo de dar conta da existência efetiva da ciência; e ela confia à cientificidade o encargo de dar conta da emergência histórica das formas e do sistema aos quais ela obedece. Tema do conhecimento equivale a uma degeneração do saber. 117

FERNANDES, Florestan. O que é revolução. São Paulo: Abril Cultural; Brasiliense, 1984.

A revolução apenas como e enquanto transformação estrutural da sociedade capitalista representa uma fronteira da qual as classes trabalhadoras (e especialmente suas vanguardas) não poderão fugir sem conseqüências funestas. 12

A burguesia tem pouco que dar e cede a medo. O proletariado cresce com a consciência de que tem de tomar tudo com as próprias mãos e , a médio prazo, aprende que deve passar tão depressa quanto possível da condição de fiel da “democracia burguesa” para a de fator de uma democracia da maioria, isto é, uma democracia popular ou operária. 13-4

A revolução em processo, que caracteriza a presença e o papel construtivo das classes trabalhadoras na história, não é só uma revolução anticapitalista e antiburguesa. 16

A burguesia não levou sua revolução até o fim e até o fundo porque não teve a seu favor uma substância de classe revolucionária que a animasse e superar-se, a negar-se e a transcender-se de modo inexorável e incessante. 17


O movimento proletário é o movimento consciente e independente da imensa maioria, em proveito da imensa maioria. 24

Em suma, quem faz a revolução é a grande massa proletária e quem lhe dá sentido é a grande massa proletária. 25

Enquanto a guerra civil é latente, a transformação revolucionária se equaciona dentro da ordem, como um processo de alargamento e aperfeiçoamento da sociedade burguesa pela ação coletiva do proletariado; quando a guerra civil se torna aberta, a transformação revolucionária se equaciona contra a ordem, envolvendo primeiro a conquista do poder, destituída de dominação do homem pelo homem... 26

A revolução social do proletariado não constitui uma fatalidade do desenvolvimento capitalista. 37

O movimento histórico do proletariado vergou exatamente nos países onde ele tinha as melhores condições para dinamizar a luta de classes de forma revolucionária. 43

A luta de classe não constitui um artigo de fé. Ela é uma realidade e só poderá desaparecer se o capitalismo for destruído. 45

Os que não gostam do capitalismo precisam aprender a conviver com ele, a torná-lo “mais humano”, através da dissidência inteligente e dos movimentos dotados de centros múltiplos de defesa comunitária da “qualidade da vida”. Ora, o capitalismo é o maior coveiro da qualidade de vida. Por onde ele passou com vitalidade, nos países do centro e da periferia, superdesenvolvidos, subdesenvolvidos ou não desenvolvidos, o efeito foi sempre o mesmo. 47

TOMAZZELO, Maria Guiomar Carneiro (Org.). A experimentação na aprendizagem de conceitos físicos sob a perspectiva histórico-social. Piracicaba (SP): U

TOMAZZELO, Maria Guiomar Carneiro & GURGEL, Célia Margutti do Amaral. A prática experimental em física: como ir além? In: TOMAZZELO, Maria Guiomar Carneiro (Org.). A experimentação na aprendizagem de conceitos físicos sob a perspectiva histórico-social. Piracicaba (SP): UNIMEP/CAPES/PROIN, 2000, p. 11-32.

A elaboração de práticas, a partir do tema Energia, surgiu das situações vivenciadas em sala de aula no decorrer de nossas atividades docentes, orientando as experiências de laboratório apoiadas no tratamento de um problema que fosse relevante e significativo aos alunos. 11
Quanto à prática experimental em sala de aula, nos últimos anos, GURGEL (2000) destaca que docentes e pesquisadores vem chamando atenção sobre os limites da utilização do métodos da descoberta/redescoberta, observando que, o ensino apoiado nestas práticas, parte da convicção de que os alunos aprendem por conta própria, qualquer conteúdo cientifico, a partir da observação. 13
GURGEL, Célia Margutti do Amaral. A experimentação em sala de aula e a construção do conhecimento pelo aluno. In: O livro da experimentoteca: educação para as ciências da natureza através de praticas experimentais. Piracicaba (SP): UNIMEP/USP/VITAE, 2000.

...não basta a aplicação de mecanismos mais amplos e completos para mudar e/ou inovar as práticas laboratoriais. É necessário ir além, sobretudo, com apoio das referências filosóficas e históricas da ciência, para entendermos o que se quer pesquisar,como, porque e, ainda, para que servirão os resultados da investigação. Esta dimensão vai possibilitar uma visão complexa, global (ou holística) dos problemas e ainda, uma ampliação da percepção critica sobre o método científico de alunos e professores frente às práticas experimentais da Física, porque o conhecimento cientifico não se constrói a partir do nada, ao contrário, ele apresenta um caráter social e histórico que deve ser levado em conta no processo ensino-aprendizagem. 20-1
Nos últimos anos tem-se observado um consenso entre os pesquisadores sobre a relevância histórica na formação cientifica. Embora exista um clima de comunicação entre as Ciências Naturais, Sociais, a Filosofia e a Historia, há muitas críticas na apresentação dos conteúdos de ciências sob uma perspectiva histórica. 21


GURGEL, Célia Margutti do Amaral. Ações investigativas no ensino da física: sobre o método. In: TOMAZZELO, Maria Guiomar Carneiro (Org.). A experimentação na aprendizagem de conceitos físicos sob a perspectiva histórico-social. Piracicaba (SP): UNIMEP/CAPES/PROIN, 2000, p. 33-58.

As expectativas geradas pela chegada do século XXI, ao final da década de 90, promoveram e continuam promovendo uma busca de superação de procedimentos teórico-metodologicos no âmbito do processo de ensino em geral, particularmente no campo das Ciências da Natureza e Matemáticas, chegando a se propor, por vezes, mudanças radicais, mais apropriadas à grandes mudanças que abalaram o final do século XX. 33
Os anos 60 e 70 foram marcados por muitas investigações no sentido de se buscar mudanças e invocações curriculares que pudessem responder a uma considerável defasagem entre os notórios progressos da sociedade industrial e os programas de ensino em uso nas escolas. Nesse âmbito, os ensinos das Ciências, Física, Química, Biologia e Matemática foram plenamente atingidos. 33-3
MOREIRA (1990), ao tratar da pesquisa em ensino de Ciências/Física, diz que, na década de 70, esta era conduzida sem referencial teórico explícito, ou tinha uma referência comportamentalista (behaviorista, associacionista) e o ensino era compreendido como algo que só ocorria através de controle de reforço; o professor tinha o papel institucional de programar contingências de reforço para o aprendiz exibir comportamento terminal com respostas desejadas; a aprendizagem deveria apresentar contingências reforçadas; a avaliação deveria comparar o desempenho do aprendiz com critérios pré-definidos, e a orientação curricular era vista como um processo tecnológico, um meio de produzir determinado produto porque o foco não estava no aluno, mas no desenvolvimento de uma tecnologia de instrução, influenciando o comportamento do aluno ou indivíduo através de estímulos, respostas e contingências reforçadoras. 41
MOREIRA, Marco Antonio. Pesquisa em ensino: o vê epistemológico do GOWIN. São Paulo: EPU, 1990.
Ao contrário do que pregava o positivismo, a nova visão da filosofia da Ciência vai considerar que o que o cientista observa e investiga é uma construção da realidade, conforme seu desejo/dúvida segundo sua formação, seus valores sociais e suas referências teóricas. Estudar e investigar, sob uma perspectiva histórica e filosófica os fenômenos e fatos da Ciência, é facilitar uma compreensão epistêmica, e não sua falsabilidade e ou refutabilidade, em termos de conhecimento científico. 47
... a visão de Ciência que a Escola deveria buscar aprofundar, não é a de um saber rígido, resultante de uma acumulação de verdades verdadeiras, mas, um campo sempre aberto onde se combatem não só as teorias, mas também os princípios da explicação, isto é, também as visões de mundo e os postulados metafísicos. Estes pressupostos nos remetem a Paulo Freire e suas obras, ao enfatizar, sempre, que a educação deve servir para libertar o homem, sob o ponto de vista d ignorância, da dependência, da submissão e da passividade. 52

ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas,

Concebemos normalmente o trabalho como uma atividade regular e sem interrupções, intensa e carente de satisfações intrínsecas, impacientamo-nos quando um garçom tarda em nos servir e sentimo-nos indignados diante da imagem de dois funcionários que conversam, interrompendo suas tarefas, embora saibamos que seus trabalhos não têm nada de estimulante. Consideramos que alguém que cobra um salário por oito horas de jornada deve cumpri-las desde o primeiro até o último minuto. 3

Se pensamos o mundo em seu conjunto, em lugar de fazê-lo somente na parte que ocupamos, não é difícil ver que destruímos a África e que demos lugar a uma escandalosa polarização entre riqueza e miséria na Ásia e na América Latina, fazendo com que milhões de pessoas vivam abaixo do nível de subsistência e substituindo prometidos processos de desenvolvimento autônomo – como na Índia e em outros lugares - por uma dependência atroz. 5

São fáceis de serem identificadas, entretanto, duas fontes de mal-estar profundamente arraigadas e de longo alcance, associadas ao capitalismo e à industrialização e que não apresentam perspectivas de melhorar. Em primeiro lugar, nossas necessidades pessoais, estimuladas pela comunicação de massas, pela publicidade e pela visão da outra parte dentro de uma distribuição desigual da riqueza, crescem muito mais rapidamente que nossas possibilidades... Em segundo lugar, nossa sociedade nutre uma imagem de existência de oportunidades para todos que não corresponde à realidade, motivo pelo qual e apesar do qual o efeito para a maioria é a sensação de fracasso, a perda de estima e auto-culpabilização. 5-6

Na economia de subsistência produz-se para satisfazer uma gama limitada e pouco cambiante de necessidades. O trabalho é indissociável de seus fins e, como conseqüência, da vida mesma em seu conjunto... Dentro do marco de uma divisão do trabalho tão simples que se esgota, ou quase, na repartição de tarefas entre homens e mulheres, o trabalhador decide o que produzir, como produzi-lo, quando e a que ritmo... A situação é muito diferente em uma sociedade industrializada. A imensa maioria das pessoas não conta com a capacidade de decidir qual será o produto de seu trabalho... A liberdade não é algo absoluto, mas relativo à realidade que nos rodeia. 7

Em sua maioria, os trabalhadores de hoje não contam com a capacidade de controlar e determinar por si mesmos seu processo de trabalho. Os trabalhadores assalariados, que são a maior parte da população chamada “economicamente ativa” - da qual um claro viés sexista exclui as mulheres que realizam apenas tarefas domésticas, e consequentemente são classificadas como inativas - , vem vêem-se inseridos em organizações produtivas com uma divisão do trabalho mais ou menos desenvolvida para cuja conformação não se contou nem se contará com eles. 9

Enfim, nas economias pré-industriais os homens dispõem a seu critério de seu tempo de trabalho – e de seu tempo em geral -, ou seja decidem sua duração, sua intensidade, suas interrupções. 9

O trabalho é necessário para a reprodução da vida humana, mas é algo mais que sua mera reprodução mecânica. Ele incorpora um elemento de vontade que o converte em atividade livre e, de maneira geral, na base de toda a liberdade. 10

O primeiro passo verdadeiramente importante, no que concerne ao processo de trabalho, a partir da produção de subsistência é o que leva à produção para a troca. 13

Por isso a passagem da produção para o mercado ao trabalho assalariado, independentemente das diversas subformas que possam adotar um e outro, representa a passagem da independência à dependência, ou de depender tão-somente de forças impessoais como são ou parecem ser as do mercado, embora estejam mediadas pelas coisas; a passagem da elaboração completa do produto, que pode ser a base do orgulho profissional... 16

A maquinaria estabelece um ritmo mecânico ao qual o trabalhador, como apêndice, tem que se subordinar, incorporando em seu mecanismo uma regulação do tempo e da intensidade que, sem ela, exigiria elevados custos de supervisão. 16

Frente a divisão manufatureira do trabalho, o taylorismo representa simplesmente uma tentativa de sistematização, codificação e regulação dos processos de trabalho individuais com vistas a maximização do lucro, mas seu método é qualitativamente distinto. 17

O fordismo é a incorporação do sistema taylorista ao desenho da maquinaria mais a organização do fluxo contínuo do material sobre o qual se trabalha: simplificando, a linha de montagem. Tal como a maquinaria na divisão manufatureira do trabalho, o fordismo, que representa com a relação ao taylorismo à máquina, a supressão de sua capacidade de decisão e, ao mesmo tempo, a diminuição drástica dos custos de supervisão. 17

Em que consiste, pois, a alienação do trabalho? Primeiramente, fato de que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence a seu ser; que em seu trabalho, o trabalhador não se afirma, mas se nega; não se sente feliz, mas infeliz; não desenvolve uma livre energia física e espiritual, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. Por isso o trabalhador só se sente ele mesmo fora do trabalho, e no trabalho algo fora dele. Ele se sente em casa quando não trabalhava, e quando trabalha se sente em casa. Seu trabalho não é, assim, voluntário, mas obrigado; é trabalho forçado. Por isso não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer as necessidades fora do trabalho... Disso resulta que o homem (o trabalhador) apenas se sente livre em suas funções animais, no comer, beber, procriar, e quando muito no que se refere à habitação e à vestimenta, e em troca em suas funções humana sente-se como animal. O que é animal torna-se humano e que é humano torna-se animal. 121

MARX, Karl. Manuscritos filosóficos: economia e filosofia. Madrid: Alianza Editorial. 1977.

A experiência tem-no demonstrado. De todos os tipos de criação, a do gado humano é a mais difícil. Para que a escravidão seja rentável quando se aplica a empresas em grande escala, tem que haver abundância de carne humana barata no mercado. Isto só se pode alcançar por meio da guerra ou das incursões em busca de escravos. De maneira que uma sociedade dificilmente pode basear uma boa parte de sua economia em seres humanos domesticados, a não ser que tenha à mão sociedades mais fracas a serem vencidas ou arrasadas. 247

BLOCH, M. The rise of dependent cultivation and seingniorial institutions. In: MM POSTAN, ed Cambridge Economic History of Europe., I: the agrarian life of the Middle Ages, Nova York, Cambridge University Press. 1966

Se se comparam as vantagens e inconvenientes dos escravos, cuja reprodução compensa, menos que a de qualquer outro gado, a perda resultante de morte natural, invalidez ou de incidente, e que proporcionam sempre uma quantidade de trabalho muito menor que a de um trabalhador independente, chegaremos a perguntar-nos se o trabalho escravo não era muito caro... que o trabalho livre 23

Ademais a compra de escravos supunha imobilizar um capital que apenas ao cabo de um longo período seria recuperado, enquanto o salário, cujo único objetivo é cobrir os custos diários, semanais ou mensais de reprodução da força de trabalho, é recuperado muito mais rapidamente: em termos mais técnicos, podemos dizer que o escravo representa também uma inversão em capital fixo, o assalariado apenas um capital circulante. 23

O trabalho forçado pode absorver o tempo e a vida do trabalhador e obter seu esforço físico, mas de nenhum modo pode obter sua colaboração, seu compromisso. Bem pelo contrário, torna-o impossível desde o principio, como se mostrou em todos os casos em que existiu, desde a mobilização forçada dos africanos pelas potências coloniais até o trabalho dos convictos, hoje em dia, em muitos países. 24

A maioria das pessoas que chegam à idade adulta encontram já uma série de condições dadas: não existe para elas outra via disponível de obtenção de seus meios de vida senão o trabalho assalariado, este goza já de aceitação social, os que o rejeitam têm sido relegados a uma posição marginal e a cultura dominante bendiz e reproduz tudo isto. 30

Não há nada tão parecido com a estupidez e com a falta de interesse da atividade fabril quanto a militar a que são submetidos milhões de jovens varões nos paises com serviço militar obrigatório. Depois de tal experiência, o mais embrutecedor dos trabalhos pode ser visto como uma libertação... Era preciso inventar algo melhor, e inventou-se e reinventou-se a escola... A instituição e o processo escolares foram reorganizados de forma tal que as salas de aula se convertem no lugar apropriado para acostumar-se às relações sociais do processo de produção capaitalista, no espaço institucional adequado para preparar as crianças e os jovens para o trabalho. 30-1

Se os trabalhadores ocidentais adultos tiveram que ser moralizados e os nativos das colônias civilizados, os novos membros da sociedade têm que ser educados. 31

DEMO, Pedro. Pobreza política. 5ª Edição. Campinas:Editora Autores Associados. 1996.

Ø Não estamos habituados a considerar como pobre a pessoa privada de sua cidadania, ou seja, que vive em estado de manipulação, ou destituída da consciência de sua opressão, ou coibida de se organizar em defesa de seus direitos. O escravo incorpora com nitidez as duas formas de pobreza: é pobre materialmente, porque não tem liberdade para se auto-determinar. P. 9.
Ø ... A lógica da quantidade é mais facilmente captável que a lógica da qualidade (Demo. 1985b e 1985d.). p. 9.
Ø A pobreza política é uma tragédia histórica, na mesma dimensão da pobreza sócio-econômica, e(p.9) se retrata, entre outras coisas, na dificuldade de formação de um povo capaz de gerir seu próprio destino e na dificuldade de institucionalização da democracia. O fato de a ciência não ter tratamento adequado ao fenômeno não é problema do fenômeno, mas da ciência, ainda metodologicamente despreparada (Demo, 1980c e 1986). P. 10.
Ø Pobreza não pode ser definida apenas como car6encia. Se assim fosse, não teria causas sociais. Talvez uma definição razoável seja aquela que a entende como "expressão do acesso às vantagens sociais", denotando com isso que faz parte da dinâmica dialética da sociedade, que divide-se entre aqueles que concentram privilégios, e aqueles que trabalham para sustentar os privilégios dos outros. Ser pobre não é apenas não ter, mas ser coibido de ter. pobreza é, em sua essência, repressão, ou seja, resultado da discriminação sobre o terreno das vantagens. P. 13.
Ø O lugar do "político"
É o espaço do poder, onde se administram as discriminações sociais. É o cerne da desigualdade, porque não há poder que não tenha em si a marca da desigualdade: um lado que está por cima, outro que está por baixo. Por mais que a situação de poder possa manifestar traços solidários, como se fora bela democracia, aí também há poder. Poder legítimo não deixa de ser poder, apenas se estrutura dentro de regras de jogo que controlam a discriminação e permitem acesso menos discriminatórios. P. 15.
Ø O ponto de partida mais interessante, porém, é o que constata ser o espaço próprio das relações sociais. Não há relações sociais que Não sejam, por definição, políticas, porquanto os homens nunca são apenas diferentes. Suas diferenças acabam se cristalizando em desigualdades. É a dinâmica típica da sociedade histórica: ela se estrutura em torno das desigualdades e muda sempre por causa das desigualdades. P. 15.
Ø Homem político é aquele que tem consci6encia histórica. Sabe dos problemas e busca soluções. Não aceita ser objeto. Quer comandar seu próprio destino. E amanhece o horizonte dos direitos, contra o dado e contra a imposição. Ator, não expectador. Criativo, não produto. Distinguimos nas civilizações e nas culturas a marca do que o homem foi e é capaz de fazer.
Ø A história é, por conseguinte, pelo menos em parte conquista humana. Por vezes muito abstrata, mas marcada por sua atuação. Nesta arena, é característica importante a(p.17) busca de autodeterminação. Não massa de manobra, não escravo, não objeto. E reencontramos a desigualdade, porque não é dada; é feita. É dada como dado estrutural, pelo menos na história conhecida. Mas sua modulação no espaço e no tempo é obra humana. Por isso as sociedades são mais ou menos desejáveis, sendo todas insatisfatórias do ponto de vista do desigual.
Homem político é aquele politicamente competente, ou seja; não se ilude sobre as suas limitações; exatamente por causa disso consegue enfrentá-las. Organiza-se para preservar seus direitos. Institui regras do jogo, para retirar a selvageria do poder. Por isso poder e estratégia de poder são no fundo a mesma coisa. Poder sem estratégia de sua manutenção é incompetente e por isso vai deixando de ser poder. Não se passa; perde-se. Ps. 17/18.
Ø A redução da desigualdade não cai do céu por descuido, mas será conquistada historicamente, não por produto definitivo, mas processual. Por isso, participação só pode ser conquistada. Aquela doada é presente de grego, porque vem do privilegiado, não do desigual. A redução da desigualdade que o desigual quer só pode ser aquela que ele mesmo constrói. E aí está sua competência. P. 18.
Ø ... Se quisermos transformar a história, há que começar pelas condições materiais de existência, não pelas idéias, pela consci6encia, pela arte, pela cultura (Marx, 1973:28-9; Engels, 1971). P. 36.
Ø Qualidade política é aquela do homem como atro e criador de si mesmo, como estratificador e distribuidor da desigualdade social. como produtor de utopias e futuros melhores. Como conquista humana. P. 41.
Ø O homem é um fenômeno capaz de optar, de esperar, de influir. Pode criar-se, pelo menos em parte. O que é obra sua, é obra histórica. O que é histórico é prático. O que é prático é ideológico. P. 41.
Ø ... qualidade política somente tem o que é criado pelo homem, na sua história e em sua cultura. A arte de ser, de se desdobrar, de se desenvolver, de criar. Entretanto, isto é a imagem positiva da qualidade. Sua conotação ideológica já transluz que pode também ser perversa, porque podemos perseguir fins desumanos. P. 42.
Ø Politicamente pobre é a pessoa ou grupo que vive a condição de massa de manobra, de objeto de dominação e manipulação, de instrumento a serviço dos outros. Dá-se na esfera do poder, onde o pobre aparece como matéria de dominação, na senzala da vida, coibido de autodeterminação. Uma face aguda desta pobreza é a falta de consciência dela mesma, o que impede, de partida, todo projeto de sua superação. P. 42.
Ø Não se dá a importância maior à pobreza política, até porque política é confundida com o manuseio de problemas econômicos. Freqüentemente lateja a noção de que soluções materiais acabam por acarretar, de forma natural e por via de decorrência, soluções não-materiais. Que ambas se condicionem, não parece haver dúvida. Que as materiais determinem necessariamente as não-materiais, já é discutível, já que quantidade de vida não leva automaticamente à qualidade de vida, e vice-versa. Pois há o rico infeliz, como há aquele que opta pela pobreza para ser feliz. Nem a mera consciência política da pobreza a desfaz necessariamente, pois ter consci6encia de um problema ainda não é resolvê-lo, embora seja passo indispensável. P. 43.
Ø ... participação é a conquista humana principal, tanto no sentido de ser mais do que nunca uma conquista - dada a dificuldade de a realizar de modo desejável - quanto no sentido de ser a mais humana imaginável - porque é especificamente a forma de realização humana. é a melhor obra de arte do homem em sua história, porque a história que vale a pena é aquela participativa, ou seja, com o teor menor possível de desigualdade, de exploração, de mercantilização, de opressão. No cerne dos desejos políticos do homem está a participação, que sedimenta metas eternas de autogestão, de democracia, de liberdade, de convivência (Demo, 1985b; 111ss). P. 44.
Ø A arte qualitativa do homem é a sociedade desejável que é capaz de criar. E isto passa necessariamente pela participação. Embora esta linguagem possa parecer etérea e exótica não há como negar que o fenômeno do poder é central na vida humana. não é mais importante que a questão(p.44) econômica, nem menos. Qualidade de vida conota sobretudo a dimensão do ser, não a do Ter, que, no entanto, é instrumento necessário. Não se pode fazer um projeto de superação da pobreza política sem superar também a pobreza sócio-econômica. Mas os horizontes possuem sua lógica própria. Na qualidade não vale o maior, mas o melhor; não o extenso, mas o intenso, não o violento, mas o envolvente; não a pressão, mas a impregnação. Ps. 44/45.
Ø Uma das características mais preocupantes de nosso processo histórico de participação popular é que os movimentos desaparecem com a mesma presteza com que surgem. P. 57.
Ø ... somos ainda uma terra de coronéis, de caciques, de caudilhos, de líderes carismáticos, que fazem de pretensas democracias currais particulares. Porém, é preciso reconhecer que os movimentos sociais de institucionalização da democracia têm avançado, seja como efeito do esforço da Igreja nas suas Comunidades Eclesiais de Base, seja na lenta conquista da autonomia sindical, seja na emergência de novas formas de associativismo produtivo (associações de micro empresários, por exemplo), seja na formação organizada de grupos de interesse, como os mutuários do BNH, seja nas associações de bairro, de favelas, de ruas etc. por mais que tudo isso possa ter traços de efemeridade, representa a esperança concreta de estarmos avançando no caminho da democracia, com qualidade. P. 57.
Ø Temos um super-Estado, em vários sentidos: porque manipula mais da metade dos investimentos produtivos; porque é em muitos lugares, sobretudo nos mais pobres, o maior(p.60) empregador; porque invade todas as esferas da sociedade, pelo menos com sua burocracia. No entanto, a característica de super-Estado se vislumbra sobretudo no fato de que escapa à sociedade civil, embora seja por esta sustentado. É uma criatura que ficou maior que seu criador e já o domina. P. 60/61.
Ø Em nossa realidade, por incrível que pareça conseguimos acumular os defeitos da postura liberal e da postura(p. 65) socialista. De um lado, a visão da direita, que confunde liberdade com capacidade econômica e tem dificuldade de aceitar direitos humanos incondicionais, acima, por exemplo, das determinações do mercado. De outro, a visão de esquerda exclusivamente estalizante, que esquece da produção (auto-sustentação) em nome de um Estado pretensamente capaz de a tudo prover; implanta facilmente o parasitismo público, no modelo dos socialismos reais. Ps. 65/66.
Ø À medida, porém que se solidifica o caminho da cidadania, emerge a reação saudável contra a tutela, que é, no fundo, o cerne de todo processo educativo autêntico. Educar não é produzir discípulos, asseclas, cúmplices, mas sim outros educadores, de cuja capacidade de autonomia se nutrem para serem educadores. Pois mestre é quem não se restringe a ser discípulo, e, por entender que é capaz de contribuir participativamente, quer também ser mestre. P. 66.
Ø Este é o caminho normal de toda associação: nascer pequena, modesta, mas bem plantada. Se isto der certo, abre-se um horizonte infinito de negociação, também diante do Estado, através do qual se pode obter uma disponibilidade de recursos. Entretanto, tais recursos viriam como conquista do grupo, como capacidade comprovada de negociação, como ocupação de espaço próprio, não como dádiva que cobra subserviência. P. 69.
Ø No campo da participação não existe ajuda. Existem direitos e deveres somente. A própria colocação da ajuda é um erro de princípio e de prática, como era o caso, já suficientemente ridicularizado, das "ajudas ao desenvolvimento". Está na própria lógica da participação autêntica: somente quer associar-se participativamente aquele que já não quer ajuda, mas colaborar, contribuir, conquistar sob o signo da auto-determinação. P. 69.
Ø Seria certamente mais correta a atitude que, primeiro, se auto-sustenta, ainda que seja na maior pobreza, e que, segundo, por ter realizado tal conquista, aparece diante do Estado reivindicando direitos, não ajudas. Aí vale argumentar que os recursos do Estado são do cidadão e que o Estado apenas o devolve. Quer dizer, o acesso a tais recursos precisa ser uma demonstração inequívoca da capacidade de conquista comunitária. Ainda assim, é importante distinguir entre o funcionamento rotineiro da associação, que deve andar sem ajudas e tutelas, e investimentos que se queira fazer, por vezes muito onerosos. P. 71.
Ø Existe uma diferença monumental entre nosso Estado e o Estado europeu de bem-estar. Lá, a população está imediatamente por trás. Aqui,, há um fosso histórico, cuja superação será um processo profundo e certamente lento de conquista popular. P. 83.
Ø O poder detesta ser controlado. Assim como os congressistas (deputados e senadores) não apreciam que a população se ponha a vigiá-los. Aquilo que se queria um processo absolutamente normal e pertencente à definição de democracia (governo feito pelo povo e por ele controlado), torna-se coisa incômoda e inconveniente. P. 89.
Ø O Estado é necessário, ou melhor, inevitável. Mas seria um exagero concebê-lo como mal necessário. Democraticamente construído, chega a ser uma instituição muito importante, como tem sido nas social-democracias. Tomou o partido dos trabalhadores e dos pobres, realizando profundas redistribuições de renda e de poder. Não que tenha perdido sua tendência histórica típica de acumular poder. Esta continua como marca estrutural, mas foram levantadas expedientes democráticos eficazes, de tal sorte que, existindo uma presença consistente da cidadania popular organizada, o Estado se curva, em parte pelo menos, aos desígnios da sociedade. Até certo ponto, alcança ser representante da sociedade, não por vocação, mas por controle de baixo para cima. P. 90.
Ø No entanto, as reformas não acontecem mecanicamente. São menos a expressão de possíveis boas vontades de políticos, técnicos e líderes honestos, do que decorrência da cidadania, desde que capaz de se institucionalizar no tecido da sociedade. O Estado, de modo geral, não faz mudanças, mas é levado a fazê-las. A maneira mais coerente de levá-lo a fazer é conquistar o espaço da cidadania popular (Durham, 1984:24ss; Gladstone & Greve, 1984:217ss).
A presença do técnico, do professor, do político profissional tem sua importância, seja porque toda mudança necessita de sua própria ideologia e esta não é elaborada pelo povo, seja porque o conservadorismo não é uma sina, ainda que seja uma tendência. Assim, a presença de gente competente e bem-formada, no sentido da qualidade política, é fator significativo d reformas fundamentais. P. 92.
Ø Os impactos de concentração de renda da maioria das políticas sociais é notório: atende-se mais a quem está mais atendido; beneficia-se o beneficiado; enriquece-se o rico. De tal forma isso é um fato, que tornou-se o país do desperdício, mas do que a falta de recursos. Se pudéssemos reduzir a corrupção pela metade, poderíamos resolver muitos problemas básicos da população. P. 93.
Ø A qualidade de uma sociedade se retrata em seus canais de participação, no sentido das oportunidades e processos atuantes nela que levam ao fenômenos participativo autêntico. Nossa sociedade se caracteriza pela obstrução, muitas vezes obstinada, de tais canais, ou pelo esvaziamento discursivo, tornando direitos transcritos em letra morta. P. 93.
Ø Educação básica. A universalização do 1º Grau é entendida como canal de participação, porque sua finalidade precípua é tipicamente política: aprende-se a ler, escrever e contar para "saber das coisas", ou seja, para poder ser menos objeto das propotências e destino. Quem tem 1º grau poderia - pelo menos em tese - perceber melhor o mundo em que está, os problemas que a sociedade tem, o que é possível e não deixam ser, as injustiças sociais, as informações importantes que correm no espaço e no tempo e assim por diante. O 1º. Grau não tem função econômica propriamente, pois não resolve de modo geral a questão da sobrevivência. Mas avança muito na esfera política, colocando uma condição necessáira, ainda que não suficiente, da qualidade política de um povo (Fletcher, 1985:10-43; Demo, 1982b: 12-21). P. 95.
Ø Identidade cultural comunitária. Para deixar a situação de objeto, o sujeito necessita de identidade. Tal identidade(p.95) é construída na história cultural da comunidade. Sem isto, não há comunidade, mas apenas um bando de gente. Nesse sentido, a identidade cultural é a parteira da participação, porque planta a fé do grupo em seu futuro, já que viveu um passado válido. P. 95/96.
Ø Conquista de direitos. Em teoria, direitos são devidos incondicionalmente. Na prática, necessitam ser conquistados. Porquanto, se não forem conquistados, não se realiza algo que é cerne da cidadania, a saber, a capacidade de construir com iniciativa própria seu espaço. Assim, por mais que se reconheça nas leis a igualdade da mulher com respeito ao homem, a emancipação não pode ser doação, nem concessão, mas lidimamente conquista, construção da própria mulher. P. 96.

DEMO, Pedro. Conhecer e aprender: sabedoria dos limites e desafios. São Paulo: Artes Médicas Sul Ltda. 2000.

Ø A aprendizagem precisa da técnica como instrumento, mas é, no âmago, expressão política. A competência humana fundamental não é técnica, mas política, ou seja, muito mais relevante do que dominar tecnicamente a natureza é saber o que fazer da vida. P. 09.
Ø Todavia, a aprendizagem é marcada profundamente por essa virtude: trabalha os limites em nome dos desafios e os desafios dentro de limites. P. 09.
Ø Aprender é profundamente competência de desenhar o destino próprio, de inventar um sujeito crítico e criativo, dentro das circunstâncias dadas e sempre com sentido solidário. P. 10.
Ø As crianças precisam manejar conhecimento, o melhor possível, aquele que permite enfrentar os adversários de igual para igual. É loucura reduzir a escola a uma mera transmissão de conhecimento copiado, porque fabricamos um povo subalterno, conservando-o massa de manobra nas mãos do neoliberalismo. Entretanto, o acesso ao conhecimento, sobretudo saber manejar conhecimento, é o meio. P. 10.
Ø Manejando bem o conhecimento, podemos mais facilmente mudar a história; contudo, o centro do problema é mudar a história. P. 10.
Ø A postura instrucionista na educação encontra grande amparo entre os professores, porque é ela que lhes garante poder: poder reprovar, decidir o currículo, exigir desempenho, impor disciplina, posar de autoridade e mandar na escola. Quando se crítica a aula meramente expositiva, que continua sendo a didática típica da nossa escola, o professor defende-a com todas as forças; em parte, porque não saberia o que fazer da vida sem aula, mas em parte também porque se sente impotente sem tal instrumento. P. 11.
Ø Também quando os professores insistem em permitir perguntas, isso vai até certo ponto e é um ponto bem certo: a autoridade do professor. Ao contrário do que as teorias pós-modernas apontam em termos de falibilidade típica do conhecimento (Demo, 1999), o professor comparece com conhecimento tão respeitável que merece ser copiado! É difícil para ele aceitar que está no mesmo barco que o aluno, nadando nas mesmas águas da dúvida. Aprender não é - de modo algum - manejar certezas, mas trabalhar com inteligência as incertezas, porquanto, sendo função vital, tão vital que se confunde com a vida, não poderia fantasiar propostas contraditórias com a criatividade e com a fragilidade da vida. P. 11.
Ø A aula reprodutiva continua defendida pelo professor e pelo aluno que não querem estudar ou aprender. P. 11.
Ø A cidadania gestada na escola tem como objetivo específico fundar-se, em termos instrumentais, no manejo crítico e criativo do conhecimento e, em termos de valores e ética, na construção de sociedades alternativas. Não será qualquer contato que irá proporcionar tamanho resultado histórico, e muito menos qualquer aula. P. 12.
Ø É fundamental aprendermos a conviver com os limites, para transformá-los em desafios, e enfrentarmos os desafios, para podermos superar os limites, como apontam epistemologias mais recentes. É preciso aprendermos a viver perigosamente, porque este é o preço da autonomia. A inovação provém de quem sabe valorizar as incertezas, superar-se nos erros, saltar barreiras para recomeçar tudo de novo. P. 12.
Ø A educação precisa formar rebeldes (Sulloway, 1997; Hooks, 1994). É deles que precisamos para mudar a sociedade. P. 12.
Ø Os autores insistem na marca cultural da atividade de ensino. "O fato de que o ensino é uma atividade cultural explica por que é tão resistente à mudança". P. 16.
Ø Não se encontra praticamente nenhuma escola sem lição de pesquisa. "A premissa que está por trás é simples: se se quer melhorar o ensino, o lugar mais efetivo para fazê-lo é o contexto de uma lição em sala de aula. Se se começa com lições, o problema de como aplicar os resultados da pesquisa na sala de aula desaparece. As melhorias são percebidas dentro da sala de aula em primeiro lugar. O desafio torna-se o de identificar as formas de mudanças que melhorarão a aprendizagem do estudante na sala de aula e, uma vez identificadas as mudanças, de partilhar esse conhecimento com outros professores que enfrentam problemas similares, ou possuem os mesmos objetivos na sala de aula". P. 20.
Ø Por isso, vale dizer: quem sabe, aprende; quem não sabe, dá aula. O erro não está, em si, em dar aula, mas em que a aula é transformada em centro do professor. P. 25.
Ø É fundamental ter no professor o facilitador da aprendizagem, não a origem do conhecimento. P. 25.
Ø O maior problema da aula é a atitude passiva do estudante, o não pensar, ou seja, a simples recepção de informação. P. 28.
Ø Apenas escutar ou repetir algo é como estocá-lo de tal modo que teremos dificuldade de encontrar quando quisermos rememorar. Se elaboramos nossa aprendizagem pelo pensar acerca de suas relações com outras coisas que conhecemos ou por falar a respeito delas - explicando, resumindo ou questionando - saberemos melhor rememorar quando for necessário". P. 28.
Ø Regras e métodos para ensinar acabam evitando que se pense. P. 30.
Ø Perante o desafio de aprender a língua, trata-se, mais do que saber reproduzir as idéias de maneira lingüística adequada, de tornar-se formulador da própria língua, construtor de propostas próprias, descobridor de novos horizontes. Saber elaborar com mão própria torna-se estratégia decisiva, porquanto "a chave dessa forma de ensinar é que está baseada em conhecimento, não em regras". P. 30.
Ø "De muitas maneiras, o cérebro é como o coração ou os pulmões. Cada órgão tem sua função natural. O cérebro aprende, porque este é o seu ofício. Mas ainda, o cérebro tem capacidade virtualmente inesgotável de aprender. Cada cérebro humano saudável, independentemente da idade, sexo, nacionalidade ou background cultural da pessoa, vem equipado com conjunto de traços excepcionais: habilidade de detectar padrões e de fazer aproximações; capacidade fenomenal para vários tipos de memória; habilidade de se autocorrigir e de aprender a experiência pelo caminho da análise de dados externos e da auto-reflexão e capacidade inesgotável de criar". Trata-se, pois de "aprendizagem significativa", envolvida na produção de significados, de estilo interpretativo e reconstrutivo. P. 34.
Ø A aprendizagem baseada no cérebro é usualmente experimentada como prazerosa, embora o conteúdo seja rigoroso e desafiador intelectualmente; e os estudantes experimentam um grau elevado de automatização. Reconhecendo e encorajam a habilidade do cérebro de integrar vastos montantes de informação. Envolvem o aprendiz inteiro no processo de aprendizagem desafiador que simultaneamente engaja intelecto, criatividade, emoções e fisiologia. Favorecem as habilidades e as contribuições únicas do aprendiz na situação de ensino/aprendizagem. Reconhecem que a aprendizagem acontece na multiplicidade de contextos - sala de aula, escola, comunidade, país e planeta. Apreciam a interpenetração das partes e do todo, conectando o que está aprendido dentro de cenário maior e permitindo aos aprendizes investigar as partes dentro do todo. A aprendizagem baseada no cérebro é significativa para o aprendiz. O que aprende faz sentido". P. 35.
Ø Os trabalhadores exitosos do futuro terão de ser capazes de resolver problemas, tomar decisões, negociar adequadamente a pensar, habituarem-se a ter cabeça aberta, flexibilidade e empreendimento. Terão que saber lidar com a incerteza, a complexibilidade, a cidade global, a explosão da informação, as outras tecnologias e muitas culturas diferentes - e, mesmo assim, manter um conjunto de valores que alimente um nível adequado de estabilidade individual, integridade e harmonia social. Não será bastante para as pessoas terem adquirido estoque de fatos não-transferíveis. Elas deverão ter compreendido e internalizado suficientemente conteúdos como matemática, economia e história para fazê-los disponíveis espontânea e apropriadamente e em muitos contextos diferentes". P. 35.
Ø Os autores chamam a atenção para a falta de preocupação com o professor na instrumentação eletrônica, o que já denota a pretensão de o substituir. Entretanto, continua sendo fator central da aprendizagem, desde que não se restrinja a ser alguém "que pões a informação dentro das crianças". Sua função é a de facilitados, não no sentido de tornar as coisas fáceis, mas no de sustentar a aprendizagem, crítica e criativa do aluno, tendo este como centro de referência. P. 36.
Ø Em outras palavras, devemos ajudar os estudantes a relacionarem o material de que necessitam para conhecer o que já sabem. Fazendo isso, capitalizam o processo natural com o qual já estão equipados. Esta é a habilidade de aprender da experiência. Segue a importância da aprendizagem por descoberta, que os autores distinguem, por exemplo, daquela de Einstein, aludindo ao fato de que a descoberta na sala deve estar marcada mais pela qualidade pedagógica (saber pensar) do que pela metodologia científica sofisticada. Na prática, trata-se de "educar pela pesquisa". P. 37.
Ø "A aprendizagem cooperativa, as habilidadesd de comunicação e a aprendizagem de como viver em sociedade complexa com pessoas de necessidades e emoções similares e conflitantes deveriam receber tanta atenção como o 'desenvolvimento cognitivo'". P. 37.
Ø "Ensinar para memorizar é fundamentalmente diverso de ensinar para a expansão do conhecimento natural. O primeiro tende a ser igual a colocar tijolos, na esperança de que, no devido curso, tais tijolos virem parede ou construção; o segundo começa com a noção de construção". P. 37.
Ø Partindo do conhecido, podemos reconstruir o novo, em um processo permanente de aprendizagem. Enquanto isso, vai ocorrendo a transferência gradual de responsabilidade, colimando o objetivo da autonomia do sujeito. P. 39.
Ø "A participação guiada envolve colaboração e compreensão partilhada nas atividades rotineiras de resolução de problemas. A interação com outras pessoas assiste as crianças em seu desenvolvimento, conduzindo a sua participação em atividades relevantes, ajudando-as a adaptarem a sua compreensão a situações novas, estruturando suas tentativas de resolver problemas e ajudando-as a assumirem responsabilidade para manejar a solução de problemas". P. 39.
Ø "A maioria das propostas cita o papel central do professor na melhoria do nosso sistema, mas continua sendo escrita primariamente por especialistas de fora olhando para dentro".
Ø ... perspectiva freireana: enquanto os professores forem oprimidos, não terão como abrir o mundo dos oprimidos. P. 43.
Ø Citando Schaefer: "Um fato básico é nossa ignorância sobre ensino. Simplesmente não sabemos como dar conta do conhecimento abstrato e das habilidades analíticas que a sociedade moderna exige. Parece necessário transformar pelo menos algumas escolas em centro de produção de conhecimento sobre como conduzir nossa profissão". P. 43.
Ø O grande problema, todavia, é que os professores formados em ambientes passivos, onde a aprendizagem receptiva é a regra. Urge que aprendam a pesquisar, para reconstruírem conhecimento com mão própria. P. 43.
Ø "Hoje, novas tecnologias baseadas na informação estão impondo eficiências destrutivas similares tanto no setor industrial como no de serviços em nossa economia. Milhões de trabalhadores estão perdendo seus empregos devido à diminuição das corporações, à contratação externa de pessoal e à manufatura externa". Urge transitar da indústria para o conhecimento, buscando dar conta de mais empregos fluidos com menor segurança. Essa imposição precisa ser levada a sério, sobretudo porque a desconcentração de renda não acontece diante de novos processos produtivos cada vez mais competentes e competitivos. P. 45.
Ø Saber pensar requer um consciência aberta - vontade de olhar as condições de nossas vidas, considerar alternativas e possibilidades diferentes, desafiar o saber recepcionado e tomado como evidente e ligar nossa conduta com nossa consciência". P. 46.
Ø É preciso saber enfrentar a vida, que não é fácil no contexto arduamente competitivo. No fundo, a educação é importante, porque ajuda a competir. Essa marca é hoje ainda mais saliente, porque a economia tornou-se intensiva de conhecimento. P. 47.
Ø Primeiro, deve-se reconhecerr que, dialeticamente falando, toda realidade é problemática, não porque contenha defeito, mas porque é dinâmica, precisamente dialética. P. 48.
Ø Aprender não pode aludir, nunca, a uma tarefa completa, a um procedimento acabado ou a uma pretensão totalmente realizada; ao contrário, indica vivamente a dinâmica da realidade complexa, a finitude das soluções e a incompletude do conhecimento. P. 49.
Ø Portanto, uma parte essencial da aprendizagem é o "desconfiômetro", aquele bom senso que fica sempre com o pé atrás, que testa de novo, que diz mansinho, que refaz as contas, muito professores não se propõem mais a necessidade de aprender, pois já ensinam. Deixam de estudar, não se atualizam, emboloram no tempo. Perderam o "desconfiômetro". P. 50.
Ø O que se elogia, fica como está. Para mudar - não há jeito - é preciso desfazer; geralmente dói. Por isso, seria possível dizer que a falibilidade do conhecimento é a condição fatal de sua ressurreição permanente. Algo similar ocorreria com o professor: se não sabe escutar uma crítica, também não sabe mais aprender e pensa que já resolveu seus problemas. P. 50.
Ø O espírito crítico é o modo que temos de olhar fundo, de ser impiedoso na análise, de ver sobretudo o que não se quer ver, mas é método. Dele não provém a felicidade. O saber pensar não pode escorregar para o lado mórbido da crítica, que já se compraz em destruir. Educativamente falando, a desconstrução só se completa e ganha significado na reconstrução. P. 51.
Ø A ciência aprecia muito a lógica das coisas, pois domina melhor o que se repete, sobretudo o que se repete quantitativamente, do que o movimento como tal. P. 51.
Ø Descobre logo, por exemplo, que, se quiser tornar-se amigo de fulano, precisa adaptar-se a certos modos e expectativas dele; para tanto, precisa "ler" o fulano. Aprende melhor quem descobre mais e mais profundo padrões, de tal modo que possa compor-se mais facilmente e sobretudo mais criativamente com a dinâmica dos processos. Neste sentido, a aprendizagem está principalmente na habilidade de estabelecer conexões, revê-las, refazê-las. A adaptação deixa de ser algo passivo para tornar-se uma obra de reconstrução permanente, dinâmica entre sujeitos que se influenciam mutuamente. P. 52.
Ø A complexidade das coisas desafia-nos a refazer permanentemente os padrões que imaginamos ver nela, ao mesmo tempo que nos mostra algo no fundo completamente indevassável, significando um desafio de abertura ilimitada para a criatividade. Esta, porém, não é ilimitada, pois somos limitados, mas o desafio é. P. 53.
Ø Todavia, epistemologicamente falando, todo conhecimento é reconstrutivo, porque é sempre atividade do sujeito, processo de interpretação participativa e referência culturalmente plantada, capaz de motivar a emancipação e sobretudo a subalternidade, como dia Harding (1998), ao perguntar-se se o conhecimento é multicultural, ou como diria Collins (1998), ao descobrir que, nas várias propostas científicas da humanidade para além da ocidental, o móvel principal sempre teria sido o desentendimento e o conflito entre posições. P. 53.
Ø Costumo usar a terminologia da "reconstrução", em vez da "construção" da realidade, para evitar tais excessos. Reconstruir a realidade significa partir dela, e a aprendizagem reconstrutiva é aquela que parte do que já aprendemos. P. 54.
Ø ... a visão reconstrutiva retoma a agenda de Paulo Freire, e não a agenda da Escola-Nova, porque aposta na "politicidade" da educação e da aprendizagem (Torres, 1998). Trata-se de gestar sujeitos capazes de história própria, individual e coletiva. Combina a qualidade forma e política, buscando no conhecimento o instrumento, e na educação, o fundamente ético-político. P. 54.
Ø A problemática mais dura de fundo é a pobreza política, a condição de ignorante que se quer consegue saber que é pobre e que não atina com a necessidade de tonar-se sujeito das próprias soluções, deixando de depender dos outros. A situação mais indigna do ser humano não é passar fome, mas ser massa de manobra. P. 54.
Ø A "epistemologia da curiosidade" aponta para a habilidade de despadronizar padrões, enquanto a descoberta de padrões poderia estabelecer a expectativa de fixá-los, de mantê-los e de coagulá-los. A aprendizagem permanente é cultivada pela dispoição também de "desaprender", de desconstruir e de desfazer, própria da curiosidade que não pára diante de nada, a tudo quer decompor para ver suas partes, em tudo mete a mão para apalpar, sentir, manusear, a tudo quer ver para que nada fique escondido. P. 54.
Ø Se é sábio reconhecer limites, não é sábio conformar-se. P. 55.
Ø A aprendizagem é parceira da incerteza, da dúvida e do questionamento. A escola geralmente desconhece esse desafio, porque a pedagogia dos professores está inserida na modernidade cartesiana das certezas. Tamanha é essa confiança que a aula se destina a repassar algo que os alunos devem aceitar. Tanto devem aceitar que a prova é o truque fatal dessa aceitação. Seria difícil explicar ao professor que a missão da escola é conseguir que o aluno duvide de tudo, sobretudo do próprio professor, que o conhecimento mais interessante é aquele que não dura e que as teorias são feitas para serem superadas. P. 55.
Ø O conhecimento é a prova contundente da capacidade criativa humana, bem como a indignação mais decisiva de sua limitação. O conhecimento mais profundo é aquele que "sabe o quanto ainda não sabe". O conhecimento é a máquina de aprender. P. 60.
Ø Retomando Montaigne: "No mais alto trono do mundo, só podemos sentar sobre nossas nádegas". P. 63.
Ø A completude da ciência é ilusão. A natureza é inesgotável; não tem fundo. Nossas perguntas nunca cessam; não há verdade final". P. 63.
Ø A história tem mostrado, entretanto, que a curiosidade tem sido, muitas vezes, mais forte que o prazer carnal, como dizia Hobbes. P. 64.
Ø Nunca critique alguém sem antes andar uma milha com seus sapatos. P. 64.
Ø É imperioso reconhecer que vivemos na neblina da incerteza: "Um dos dados mais básicos da humanidade é a sua profunda ignorância sobre nós mesmos e daqueles mais próximos de nós". P. 65.
Ø Sócrates fez o movimento imbatível de exigir que a sabedoria verdadeira está em conhecer os limites da sabedoria. Para colocar esse posicionamento com ênfase levemente diferente, se tivéssemos de justificar nosso modo de pensar antes de começarmos a pensar, nunca começaríamos". P. 67.
Ø Deve-se reconhecer que existe uma incompatibilidade profunda entre a mente humana e o mundo à volta, pois o "conhecimento sobre alguma coisa não é a mesma coisa". P. 67.
Ø As incapacidades mais visíveis da ciência são: falibilidade, instabilidade e daí inabilidade de alcançar algo definitivo. P. 68.
Ø "embora a ciência de fato seja limitada e não possa jamais resolver todos os seus problemas, para ela não existe nenhum limite". P. 69.
Ø De certo modo, a ignorância é felicidade, pois somos limitados de tal modo que o conhecimento exato de nossos limites e limitações está além de nós, de tal forma que é sempre incentivo para esforço e espaço para esperança. Assim, sendo o tipo de criaturas que somos, nossa limitação no mundo complexo ilimitado não é uma tragédia inqualificada para nós. P. 70.
Ø Com efeito, o montante de informação disponível ou superveniente é muito maior do que se pode digerir. A mente tem como tarefa discriminar aquela que seria relevante ou interessante. A sociedade da informação é a sociedade da entropia - uma sociedade da ignorância e da desordem. P. 72.
Ø Só o mundo é grande o suficiente para compreender o mundo todo. Nenhum mapa de todo o mundo pode jamais ser feito de modo a incluir tudo, a menos que o mapa seja o próprio terreno; nesse caso, naturalmente, não é mapa. P. 73.
Ø "O velho sonho dos cientistas da teoria que abrange tudo, a fórmula mundial que tudo prediz, se foi". P. 74.
Ø A desordem pode provir da ordem, quando o processo se torna exatamente complexo. A não-linearidade das coisas pode produzir a complexidade, partindo do simples. "É comum, na natureza, encontrarmos sistemas cujo comportamento geral é extremamente complexo, mas cujas partes componentes fundamentais são, em cada uma, simples. A complexidade é gerada pelo efeito cooperativo de inúmeros componentes simples idênticos. Ps. 74/75.
Ø Ele busca, então, estabelecer um critério Bennett: "O valor de mensagem parece residir não em sua informação (suas partes absolutamente imprevisíveis), nem em sua óbvia redundância (repetições verbais, freqüências digitais desiguais), mas antes no que poderia ser chamado sua redundância enterrada - partes previsíveis somente com muita dificuldade. Em outras palavras, o valor da mensagem é o montante de trabalho matemático, ou de outro plausível feito pelo seu originador, que seu receptor é dispensado de ter de repetir". Trata-se de profundidade lógica, escavada em um processo árduo de descarte de redundâncias e ruídos. P.75.
Ø Não há razão para considerarmos o pensamento como diferente do restante das atividades que o corpo faz. P. 75.
Ø "O que percebemos a cada momento está limitado a um compartimento extremamente pequeno do fluxo de informação sobre as coisas que nos cercam e que entram pelos órgãos do sentido". A abrangência da consciência é bem menor do que a abrangência dos perceptores sensoriais. Insinua a regra que mais de um milhão de bits entram em nossas cabeças para além do que a consciência percebe. A razão entre a capacidade de percepção e de apercepção é feita de informação descartada mais do que de informação presente". "existe um montante maior de experiência disponível do que aquela que se pode experimentar imediatamente". P. 76.
Ø Do mesmo modo, é impossível termos consciência de tudo, a começar pelo fato de que a própria consciência funciona, em grande parte, inconscientemente. Gostaríamos de ver tudo, mas vemos seletivamente aquilo que podemos, dentro das características de nossa estruturação mental. "toda linguagem, toda descrição e consciência consistem em informação que é resultado da "exformação". Enormes montantes de informação têm de ser descartados antes que possamos nos tornar conscientes. Assim, na análise final, essa consciência e sua expressão podem ser entendidas e visualizadas somente quando estiverem ancoradas naquilo que descartou toda essa informação: o corpo. Nunca percebemos a maioria das coisas que passam por nós. Nosso Eu consciente é somente uma pequena parte da história. P. 76.
Ø O ser humano não é transparente para si mesmo. Não só o coração tem razões que a razão desconhece, mas a razão também tem razões por ela mesma desconhecida. Hoje se conhece melhor o inconsciente, enquanto a consciência permanece inescrutável a rigor. Se pudéssemos deslindar totalmente a consciência, destruiríamos grande parte da tessitura inconsciente. P. 76.
Ø "a consciência é ingênua, porque conhece apenas o que é importante. Porém, a seleção e a interpretação requeridas para conhecer o que é importante não são conscientes. Percepção e seleção subliminal são o segredo real por trás da consciência". No fundo, por mais paradoxal que possa parecer, o "pensamento é inconsciente", como já dizia Poincaré. Seria um desvario total pretender ter consciência plena momento a momento. "A alma não é mais rica que o corpo". P. 77.
Ø Chama a atençao para o fato de que somos mais facilmente conscientes de coisas que fazemo9s muito mal e somos inconscientes do verdadeiro poder da inteligência. Em uma analogia com o corpo, só percebemos a maioria dos órgãos quando deixam de funcionar. P. 77.
Ø Simulação é interpretação dinâmica, hipótese e, por isso, previsão. Nossa experiência da realidade, em algum sentido, é experiência de nossa simulação do que ocorre lá fora". Duas faces são aí relevantes: reconstruímos a realidade, porque não a engolimos como tal, é preciso descartar o excesso de informação, mas também a estereotipamos, porque captamos o que nos é possível captar, de acordo com nossas hipóteses mentais. P. 77.
Ø Não há a mais remota razão para crer que o que vemos se assemelhe àquilo que estamos olhando". P. 78.
Ø A consciência é um fenômeno muito profundo, uma vez que vastas quantidades de informação precisam ser descartadas durante a sua gestação. Na prática, a informação é interessante se nos livrarmos dela. Esse aparente paradoxo funda-se no fato de que "apanhamos massa de informação, extraímos o que é importante e desfazemo-nos do resto. Em si, a informação é quase medida da improbabilidade, impreditibilidade, indeterminação. Ela está mais relacionada com a desordem, pois a ordem surge em situações nas quais há menos informação do que poderia ter existido. A informação é a medida de como muitas de nossas outras mensagens poderiam ter estado presentes para além da presente atualmente; daquilo que poderíamos ter dito, não do que dissemos". P. 78.
Ø Introduz então, a descoberta de que "consciência toma tempo, precisa correr atrás... não vivemos em tempo real, pois experimentamos o mundo com atraso". Esse atraso seria por volta de meio segundo. "Nossas ações começam inconscientemente! Mesmo quando pensamos que tomamos uma decisão consciente, nosso cérebro inicia meio segundo depois! P. 78.
Ø ... a aprendizagem precisa sobretudo de desordem, porque é nela que se pode criar e mudar. O ambiente adequado é o caos estruturado, não o da disciplina militar ou da escuta passiva do professor. P. 80.
Ø "A sociedade da informação é a porta e a promessa para aliviar muitos sofrimentos que o capitalismo infligiu ao ser humano: processos de trabalho insanos, doenças oriundas do estresse repetitivo e destruição ambiental". Contudo, a sociedade da informação apresenta outro perigo: falta de informação. P. 83.
Ø Infelizmente, a medicina atual está tão próxima do conhecimento quanto distante da sabedoria. A presunção da certeza ainda a fascina, enquanto já sabemos, sobretudo após os avanços da relatividade e da física quântica, que "nenhum objeto físico pode ser perfeitamente estável; tudo se torna diferente em tempos diferentes, simplesmente porque seu lugar no tempo mudou". Nem a realidade permite a certeza, nem o processo de conhecimento como tal. P. 84.
Ø Cérebros e mentes são formados de tal modo que sempre serão guiados - consciente ou inconscientemente. Todos esses relógios conscientes e inconscientes que pulsam a passagem do tempo interior são produtos do passado, da evolução de nossa espécie". P. 84.
Ø Pollack reclama severamente da atitude passiva da medicina frente à morte, apesar de toda a sua empáfia. "A ciência acredita que a mortalidade individual foi o fato da vida desde que o mundo vivo começou: nem o melhor, nem o pior, mas simplesmente a única estratégia para a sobrevivência continuada da vida". "A passagem do tempo em todo ser vivo é, assim, ligada à certeza da morte". P. 85.
Ø Os médicos ignoram o tempo interior e tratam os pacientes apenas como pacientes externos. P. 85.
Ø A ciência engaja a mente inteira de cada cientista, tanto as partes conscientes como inconscientes; medos, fantasias, sonhos e memórias são tão importantes para o cientista como todas as mensurações ou modelos. A famosa intensidade e paixão com que os cientistas buscam apagar o ímpeto da emoção em seu trabalho é um exemplo inadvertido, mas potente, do contexto ricamente emocional no qual a ciência atualmente ocorre. P. 87.
Ø Pollack afirma que, afinal, "todos somos produtos de nossos erros passados. As variações genéticas nas espécies ancestrais que a seleção natural escolheu com o objetivo de resolver o problema da sobrevivência de nossa própria espécie foram erros quando ocorreram". Possivelmente, os erros levam-nos muito mais a aprender do que os acertos. Esse tatear inteligente, seletivo, sempre reconstrutivo e permanentemente em movimento é a maravilha da mente humana. P. 88.
Ø "O significado de conceito é o conjunto vago que o define". P. 91.
Ø ... o que é vago tem pedaços precisos. P. 91.
Ø ... hoje parece claro que a dúvida e a incerteza estão tornando-se parceiras naturais da vida acadêmica, não apenas como restrição a ser "engolida", mas muito mais como fonte da extrema criatividade científica. P. 97.
Ø Dizia Einstein: "Na medida em que as leis da matemática se referem à realidade, não são certas, e na medida em que são certas, não se referem à realidade". P. 98.
Ø O "conflito é a fonte de energia da vida intelectual e é limitado por si mesmo", pois, ao mesmo tempo que pode desagregar, sinaliza, a partir de certo nível, que é preciso agregar. P. 98.
Ø Ainda que a mente seja um produto do cérebro e nada mais do que atividade cerebral, o pensamento, a emoção, o desejo, o amor não são apenas secreções orgânicas. P. 102.
Ø Também é fundamental o papel da imaginação, que busca a ordem alternativa das coisas e a empatia de viver no mundo, arranjando sentido pela proximidade, pelo toque, pela imisção, não pela frieza calculista da lógica. "É verdade que conhecemos muito pouco do que temos sempre conhecido, sendo que o que existe são variantes de noções longamente aceitas ou assumidas". P. 106.
Ø O autor adota uma postura interessante diante da informação, afirmar que aprendemos a descartá-la, não a obtê-la, embora se viva em um mundo onde se crê que informação seja o que há de mais importante na sociedade. Com efeito, o montante de informação disponível ou superveniente é muito maior do que se pode digerir. A mente tem como tarefa discriminar aquela que seria relevante ou interessante. A sociedade da informação é a sociedade da entropia - uma sociedade da ignorância e da desordem. Por isso, a informação refere-se mais propriamente àquilo com que estamos surpresos, à mensagem que chama a atenção e supõe um contexto para ser inteligível. Entropia é a medida do montante de informação que descartamos, quando vemos um sistema de fora: o movimento de um gás como temperatura, a série de letras como números de símbolos. Trata-se da maneira como a mente lida com a complexidade: introduz nela princípios de simplificação, descartando o que parece supérfluo. P.72.
Ø Os filósofos, sobretudo os epistemólogos, já haviam apontado para a incompletude do conhecimento, mas sempre do ponto de vista das ciências humanas". A proposta de Gödel repercutiu rudemente na ciência cartesiana, como seria de se esperar. "Tal descoberta, compreensivelmente chamada de prova mais profunda produzida até hoje, diz respeito aos limites da certeza do conhecimento humano, os limites do que podemos provar. É prova de que não podemos provar tudo, mesmo quando sabemos que é verdade". P. 73.
Ø A ciência, às vezes, é um método especial para descobrir coiss; outras vezes, é um corpo de conhecimento que emerge das coisas descobertas; pode ser, ainda, as coisas novas resultantes das descobertas (tecnologia). p. 111.
Ø O progresso da ciência provém, na prática, da dúvida e da incerteza. A abertura para alternativas vem da admissão da ignorância. A certeza como tal pode descambar em posições fechadas, que apostam em exclusividade e superioridade. P. 112.
Ø Não somos tão inteligentes. Somos fechados, ignorantes. Devemos manter o canal aberto". P. 112.
Ø O clamor ético torna-se compreensível, porque os disparates tornam-se inacreditáveis: quanto mais se sabe, sabe-se tanto mais monopolizar o saber. Daí não segue que seria preferível a ignorância - uma vez embarcados no conhecimento, não temos volta - mas será necessário reconhecer que o sentido do conhecimento não pode ser o mercado, a pressa, a inovação, mas o bem comum. P. 116.
Ø Já sabemos: o aumento da riqueza facilita mais a concentração do que a desconcentração da renda. Com o conhecimento, que vai se tornando talvez mais importante que o próprio capital, não é diferente. P. 117.
Ø Para mostrar que a lógica é menos lógica do que se imagina, é preciso usar a lógica. P. 120.
Ø Deve-se abandonar a idéia clássica da estabilidade imóvel. A dinâmica permanente é a estabilidade das coisas. P.120.
Ø "Sim, pais competentes tendem a ter filhos competentes, mas isto poderia ser atribuído à hereditariedade". Crescer na mesma casa, não faz o filho tornar-se mais semelhante. Idéia simples: as crianças desenvolvem diferentes selves, personalidades, em ambientes diferentes, muito à revelia da influência dos pais. P. 122.
Ø "De fato, há forte tendência em não transferir o conhecimento ou o treinamento para novas situações. De acordo com o teórico da aprendizagem Datterman, não há uma evidência convincente de que as pessoas espontaneamente transfiram o que aprenderam em uma situação para a nova situação, a menos que a situação nova relembre estreitamente a outra anterior. Detterman aponta que a subgeneralização pode ser mais adaptativa do que a superggeneralização. É mais seguro assumir que a nova situação tem regras novas, que é necessário determinar quais são as novas regras, do que seguir em frente de qualquer maneira sob a premissa de que as velhas regras ainda valem". Ps. 122/123.
Ø ... a aprendizagem por similitude é importante, mas decisiva é aquela que sabe aprender de contextos diferentes. P. 123.
Ø Harris adota um estranho conceito de generalização, restrito à transferência de conteúdos similares. Dentro da concepção não linear, o desafio maior é saber generalizar a partir das diferenças, e, possivelmente, uma personalidade será tanto mais estável - sempre em termos dinâmicos - se souber transitar criativamente por contextos diferentes e mesmo contraditórios. P. 124.
Ø "Que a maioria dos bebês acaba aceitando ter de ficar consigo mesmos é testemunho da adaptabilidade de nossa espécie(...) para pessoas criadas em culturas tradicionais, o modo como os americanos criam seus filhos é 'não-natural'. Justificamos nossos métodos dizendo que queremos que nossos filhos sejam independentes e, de fato, eles parecem ser bem independentes. Mas não há prova de que, colocando-os na cama por si mesmos, é o que os faz independentes. P. 125.
Ø O céu é muito mais do que o telescópio pode ver. P. 125.
Ø Exagerando a crítica: o ideal seria que as emoções fosses estruturas físicas mensuráveis, para poderem ser melhor captadas experimentalmente. P. 125.
Ø Embora a infância seja o tempo para aprender, é um erro pensar que as crianças sejam vasos vazios, aceitando passivamente tudo o que os adultos nas suas vidas decidem incutir nelas". P. 127.
Ø Para Harris, "a natureza é eficiente; não é gentil. Na média, as fêmeas são mais fracas e menos agressivas do que os machos, e em toda sociedade humana correm o risco de serem subjulgadas". Embora se possa aceitar que algumas teses feministas, ao reduzirem seus problemas a explorações culturais, sejam impróprias e exageradas, atribuir tais características às fêmeas por razões hereditárias é, pelo menos um risco pouco científico. Tenta, então mostrar que as verdadeiras "escolas das crianças" não aquelas que os adultos inventaram para elas. "Para as crianças nas escolas, as pessoas mais importantes na sala de aula são as outras crianças". P. 128.
Ø De acordo com os distribuidores de conselhos, a auto-estima é a coisa mais valiosa que os pais podem dar ao filho". Entretanto, "tais escritores podem estar colocando o carro à frente dos bois, tomando o efeito pela causa. De acordo com o psicólogo Dawes, tentar elevar a auto-estima das pessoas é fútil, porque essa estratégia "ignora o princípio simples de que muito de nossos sentimentos resulta antes do que fazemos do que daquilo que nos levam a fazer. Não há uma sólida evidência, diz Dawes , que a baixa auto-estima seja 'importante variável causal do comportamento'". "Sentir-se muito bem consigo mesmo pode, com efeito, ser contraprodutivo. O problema é que as pessoas com alta auto-estima tendem a pensar que são invulneráveis". P. 129.
Ø "Os pais não conseguem evitar que seus filhos sejam estigmatizados de modos negativos pelos seus companheiros de grupo de idade. Todavia, podem fazer com que isto ocorra menos". P. 129.
Ø "Temos pouco poder de determinar como nossos filhos irão comportar-se quando não estiverem conosco, mas temos grande poder para determinar como se comportarão em casa. Temos pouco poder para determinar como o mundo irá tratá-los, mas temos grande poder para determinar como serão felizes ou infelizes em casa". P. 129.
Ø Imaginar que valorizamos na vida só o que nos dá prazer é total futilidade. P. 130.
Ø Porém, "a idéia de que podemos fazer nossos filhos tornarem-se o que queremos é ilusão. Abandone-a. as crianças não são tapetes vazios nos quais os pais podem pintar seus sonhos. Não se preocupe com que os distribuidores de conselhos lhes dizem. Ame seus filhos porque eles são amáveis, não porque se pensa que precisam disso. Curta-os. Ensine-lhes o que puder. Relaxe. O modo como vão crescendo não é reflexo do cuidado que se tem dado a eles. Você não pode aperfeiçoa-los, nem arruiná-los. Não são seus para aperfeiçoar ou arruinar: eles pertencem ao amanhã". P. 130.
Ø Primeiro, não compreendemos como a mente funciona - tanto quanto não entendemos como o corpo funciona e, certamente, não tão bem para desenhar a utopia ou curar a infelicidade. P. 134.
Ø Um sistema inteligente não pode estar equipado com trilhões de fatos, mas com uma lista menor de verdades e conjunto de regras para deduzir suas implicações. Além disso, não pode ficar apenas com efeitos diretos, mas dar conta também dos laterais filtrando só as implicações relevantes. P. 135.
O êxito de nossa capacidade mental é definido como uma engenharia reversa, ou seja, saber decifrar o funcionamento das coisas ao refazer o caminho inverso. A mente é um sistema de órgão de computação, projetados por seleção natural, para resolver as espécies de problemas que nossos antepassados enfrentaram em seu modo pregresso de vida, em particular, compreender e manejar objetos, animais, plantas e outras pessoas. O resumo pode ser desdobrado em várias partes. P. 135.

DE MASI, Domenico. Desenvolvimento sem trabalho. Tradução: Eugênia Deheinzelin. São Paulo: Editora Esfera, 1999.

Ø "Se cada instrumento pudesse, a uma ordem dada, trabalhar por si, se as lançadeiras tecessem sozinhas, se o arco tocasse sozinho a cítara, os empreendedores não iriam precisar de operários e os patrões dispensariam os escravos." Aristóteles
"Acreditar que os trabalhadores substituídos pelas máquinas encontrarão inevitavelmente trabalho na construção dessas mesmas máquinas equivale a acreditar que os cavalos substituídos pelos veículos mecânicos poderiam ser utilizados nos diferentes setores da indústria automobilística." Wassily Leontief.
"A sociedade do desenvolvimento foi também uma sociedade do trabalho. A vida dos homens era construída em torno do trabalho(...). Pode-se até mesmo dizer que a figura do homem trabalhador representou o ideal desta sociedade. Resta-nos perguntar: o que irá acontecer quando - para citar Hannah Arendt -, à sociedade do trabalho, o próprio trabalho vir a faltar?" - Ralf Dahrendorf.
Dez Teses
Ø As dez teses advogadas neste ensaio são intrinsicamente simples, mas, em geral, postas de lado porque cheias de complexas implicações prática que desencorajam sua aceitação.
O progresso humano nada mais é do que um longo percurso do homem rumo à intencional libertação, primeiro da fadiga física e depois da faina intelectual. Em linhas gerais, na Pré-História, o trabalho foi empreendido por homens com a ajuda de alguns animais domésticas e de poucos utensílios primitivos. A partir da civilização mesopotâmica, entretanto, foi desenvolvido por escravos auxiliados por animais e por máquinas elementares como a roda. Na Idade Média, já era feito por servos da gleba e por artesões livres com a ajuda de animais modernamente arreados e de máquinas bastante sofisticadas como o moinho da água. Na era industrial entre a Segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, foi executado por máquinas simples e automáticas, como as existentes na cadeia de montagem, que se relacionavam com executivos no contexto de uma organização científica. No século XX, da década de 50 em diante, na fase neo-industrial, foi empreendido por operários , empregados, profissionais e gerentes auxiliados por equipamentos mecânicos e eletrônicos, como o computador, no contexto de uma organização flexível. Finalmente, na nossa(p.7) sociedade pós-industrial, é feito por planejadores que inventam, e por máquinas complexas como os robôs, que se incumbem das tarefas, no contexto de uma organização criativa. Daí resulta uma sucessão de fases liberatórias: a que vai desde as origens até a Idade Média trouxe a progressiva libertação da escravatura; a que vai da Idade Média até a primeira metade do século XX trouxe a progressiva libertação da fadiga; a que teve início a partir da Segunda Guerra Mundial e na qual vivemos hoje visa à libertação do trabalho. Ponto e parágrafo.
Em alguns casos como, por exemplo, na Idade Média e até mesmo, em grau menor, na Améria até o fim do século XVIII, as invenções tecnológicas e estruturais foram fomentadas pela necessidade de suprir a falta de escravos ou de proletários. Ps. 7/8.
Apesar de haver registro de casos históricos em que o desemprego conviveu com o excesso de oferta de trabalho, a longo prazo, porém, a tendência mostra outra situação. Acima de tudo o desemprego tende a depender de uma demanda por trabalho e de uma organização social(p.8) incapazes de se articular de forma mais propícia à valorização dos recursos humanos existentes. Muitas vezes, a tecnologia e a organização são subutilizadas para não provocar o desemprego; outras tantas vezes se atrasa a libertação da fadiga ou do trabalho por duas razões. A primeira é a incapacidade de extrair da tecnologia e das ciências de organização todas as vantagens que elas estão em condição de oferecer. A outra razão é a incapacidade de redesenhar o sistema social, dando-lhe condições de valorizar o ócio ativo, isto é, a peculiaridade humana de introspecção, ideação, produção criativa, reprodução vital, jogo inventivo.
Enquanto o sociedade greco-romana tinha aprendido a enriquecer de significados os poucos objetos à sua disposição, a sociedade industrial preferiu enriquecer-se de tecnologia para construir sempre mais objetos. Além disso, preferiu enriquecer-se de objetos tanto mais pobres de significados qualitativos quanto mais o consumismo almejava à multiplicação quantitativa deles.
A trama entre inovação tecnológica e trabalho humano para produzir aquilo que o mercado de vez em quando deseja progride historicamente para que sempre menos trabalho humano seja preciso para fabricar sempre mais objetos e para prestar sempre mais serviços. No passado, eram as empresas em crise que cortavam o quandro de funcionários; hoje as empresas bem-sucedidas também(p.9) demitem os empregados porque podem se dar ao luxo de tecnologias mais sofisticadas e, portanto, mais aptas a substituir a mão-de-obra e a "mente-de-obra".
Na sociedade industrial, o alastramento do consumo e a relativa lentidão do progresso tecnológico permitiram ao mercado de trabalho absorver a nova mão-de-obra criada pela superprodução e reabsorver a velha mão-de-obra, que com a introdução de novas máquinas se tornara excessiva. Na sociedade pós-industrial, entretanto, os avanços tecnológicos caminham a tal velocidade que o equilíbrio entre oferta e procura de trabalho fica definitivamente rompido, criando um crescente acúmulo de mão-de-obra em relação às reais exig6encias da produção. Ps. 9/10
O contínuo crescimento dos desempregados, por um lado, leva os economistas do trabalho a elevar progressivamente o limiar de desemprego considerado fisiológico. P. 11.
Quando comparada à libertação da escravidão, que caracterizou a Idade Média, e à libertação da fadiga, que caracterizou a sociedade industrial, a libertação do trabalho, que irá caracterizar a sociedade pós-induistrial, delineia-se com traços peculiares. Posto que as máquinas se incumbirão de quase todo trabalho físico, assim como de boa parte do trabalho intelectual do tipo executivo, o ser humano irá guardar para si o monopólio da atividade criativa que, por sua própria natureza, dá muito menos(p.11) margem do que a atividade industrial para a alocação de tarefas e para a divisão entre tempo de trabalho e tempo livre. De modo diferente do desemprego, que necessariamente é acompanhado pelos males da miséria e da marginalização, a libertação do trabalho admite formas de vida muito mais livre e felizes. Passam a existir uma riqueza mais bem distribuída, uma autodeterminação sobre as tarefas, uma atividade intelectual mais rica em conteúdos, maior importância dada à estética, à qualidade de vida, e maior espaço para a auto-realização subjetiva.
A eventualidade de suprir a humanidade de bens e serviços de que ela precisa, com um uso mínimo de trabalho humano, implica a necessidade de se projetarem novas formas "políticas" de alocar as tarefas e de distribuir a riqueza.
Tendo em vista que um número sempre maior de pessoas irá usufruir dos bens e serviços sem se envolver em sua produção, serão precisas novas formas de bem-estar (welfare), para atender às necessidades daqueles que não trabalham, e novas formas de gratificação, para atender às necessidades daqueles que trabalham.
Dentro das organizações, a ciência de planejar e controlar as atividade dos "dependentes" terá de se converter, e bem depressa, na arte de motivar para a criatividade e para a remoção de barreiras das quais a burocracia sempre lança mão para impedir a expressão criativa. No âmago da sociedade atual, diante de um sistema composto sobretudo por "novos desocupados", isto é, de "libertos da escravidão do trabalho", a qualificação profissional para o trabalho criativo terá de funcionar em uníssono com o preparo profissional para o ócio ativo. Ps. 11/12.
Livres e escravos na Grécia antiga
Ø Olhar o desemprego "demoradamente" e "de longe" implica percorrer os acontecimentos históricos seguindo um trajeto à primeira vista redundante. Contudo, não existe outro caminho para entender suas implicações para as teses antes expostas. Assim, em uma primeira etapa é preciso examinar a forma de trabalho mais aviltante adotada até agora pela humanidade: a escravidão e seu longo caminho rumo à abolição.
Os gregos livre encaravam o trabalho dependente com o maior desprezo, bem como qualquer outra atividade que implicasse fadiga física, ou ainda qualquer atividade executiva. No tempo de Péricles, mesmo os mais humildes dos atenienses teria estremecido diante da palavra "executivo", hoje em dia alardeada com a vaidade por muitos funcionários. Segundo Aristóteles e Platão, se comparada à produção de idéias, toda execução de objetos materiais - até mesmo a de obras-de-arte como as estátuas de Praxíteles - representava uma atividade de Segunda ordem.
Por sua vez, entre os trabalhos independentes vigorava uma rígida hierarquia de prestígio social na qual, por exemplo, o comércio era desprezado a ponto de ficar quase que totalmente relegado aos metecos. Platão, no parágrafo 2480 de Fedro, classifica as profissões em nove categorias dispostas nesta ordem decrescente de reconhecimento social: o filósofo, o bom rei, o político, o esportista, o adivinho, o poeta, o agricultor e o artesão, o demagogo, o tirano. P. 13.
Ø ... em Atenas, a vida quotidiana era feita de pequenas coisas, primitivas e muito simples e, em vez de multiplicar ou melhorar os objetos de uso diário, os gregos se esmeraram na atitude de se contentar com poucos utensílios essenciais e na sabedoria de elevar-se por meio da arte e da mente para além das angústias materiais.(p. 16.)
É surpreendente que homens capazes de criar obras-primas de arte até hoje inigualáveis, ou de elaborar sistemas filosóficos que ainda hoje continuam sendo a base da cultura ocidental, tivessem tão abertamente desleixado o próprio bem-estar material. Contentavam-se com o frescor de uma fonte, o perfil de uma colina, a sombra de um plátano para alcançar um estado de graça muito superior àquele que hoje nos dão os milhares de brinquedos mecânicos do consumo de massa. O prazer estético era tão apreciado que - conta Plutarco - alguns atenienses aprisionados na Sicília foram libertos "por terem ensinado a seus patrões o que lembravam das poesias de Eurípedes" (Nicia, XXIX, 4). A verdadeira riqueza dos gregos, portanto, não vinha da possessão de objetos úteis e de prestígio mas da capacidade de colher e degustar até o fim as sensações e os significados positivos inerentes aos objetos, aos acontecimentos, às idéias de todos os dias. Ps. 16/17.
Ø Na Grécia do período clássico, em geral, apenas quatro em cada dez pessoas eram cidadão de pleno direito, que se dedicavam à política, à filosofia, à ginástica e à poesia, e que, materialmente, viviam à custa dos outros seis a quem eram relegadas todas as atividades de natureza material e de serviço. P. 19.
Livres e escravos em Roma e na Itália
Ø Se os gregos desenvolveram a filosofia e a arte mais do que a tecnologia; se os romanos desenvolveram a política e a administração mais do que as máquinas, isso resultou de um conceito de vida baseado no gosto pelas coisas simples, resultou da disponibilidade de escravos a quem relegar a fadiga física, resultou de uma cultura que, além de justificar a escravatura, exigia um altíssimo número de escravos. P. 19.
O papel da motivação
Ø Apesar de a disponibilidade de escravos ter começado a escassear somente por volta do século IX, as causas dessa menor procura por trabalho escravo, que aliás se iniciara bem antes, devem ser procuradas em fatos como a atuação da Igreja, que apesar de não ter sido determinante foi sem dúvida relevante. Embora ela mesma tivesse escravos, condenasse suas insubordinações e, nos dizeres de alguns de seus destacados porta-vozes, justificasse a escravidão ao servir-se dela e torná-la cruel. Escreve Bloch: "Se libertar os escravos era sem dúvida uma boa ação, mantê-los sob o próprio domínio não era, apesar de tudo, uma má ação. É uma grande verdade que as libertações eram uma ação boa. Isso, porém, por si só, não explica sua freqüência. Ao contrário, se foi tão considerável era porque os patrões sem dúvida não ficaram alheios - era uma operação sem qualquer perigo, pois as circunstâncias econômicas da época somente enalteciam suas vantagens".
Eis os motivos dessas vantagens. Antes de mais nada, o custo da manutenção dos escravos nos latifúndios tornou-se progressivamente superior ao custo da subdivisão dos latifúndios em pequenas propriedades entre-(p.26) gues aos colonos para cultivo. Na medida em que a escravidão se constituía em uma condição de desgraça, a tendência natural dos escravos era fugir e se revoltar, assim como a reação dos patrões era exercer uma seleção e um controle muito severos. Os gregos costumavam matar os prisioneiros mais espertos e mais inteligentes porque se os escravizassem seria muito mais difícil frustrar suas tentativas de fuga ou de rebelião. Columela, por sua vez, destaca a dificuldade de empregar escravos inteligentes (e, portanto, capazes de fugir) na produção de vinho, porque a necessidade de acorrentá-los os incapacitava para certos movimentos indispensáveis àquele trabalho específico. Um exemplo claro do rígido controle dos patrões em relação a seus escravos pode ser visto numa velha lei romana, aplicada regularmente, que estabelecia que se um escravo tivesse matado dentro de casa seu próprio patrão, todos os demais escravos sob o mesmo teto seriam executados. Ps. 26/27.
Ø Considerando as devidas diferenças, alguns dos motivos de ordem prática que levaram à libertação dos escravos e à transformação deles em camponeses e artesãos reaparecem na tendência corrente da empreitada ou da "terceirização" de algumas atividades - publicidade, propaganda, advocacia, processamento de dados, e assim por diante - antes empreendidas por funcionários internos a custos elevados e baixa qualidade. Outro paralelismo histórico significativo pode ser feito entre a proliferação de novas profissões e de pequenas empresas que teve lugar nos tempos medievais e o quadro bastante semelhante que se observa hoje em dia.(p.28)
Resumindo, por volta do século IX, todas as peças do mosaica de motivos que conspiravam em favor da libertação dos escravos acabaram por se encaixar nos devidos lugares. Preencher a falta dos escravos tinha se tornado difícil, o preço tinha aumentado, a utilização da mão-de-obra escrava dava problemas e gastos e a libertação era aos olhos de Deus uma boa ação. Então, por que não lhes dar a liberdade? Em seu lugar, os servos da gleba podiam ser empregados e, para que os escravos não deixassem saudades, logo depois, entre os séculos X e XIII chegou o progresso tecnológico e com ele a substituição de muitos dos trabalhos do homem pelo trabalho mecânico.
Daquela época em diante, a escravidão pouco a pouco desaparecerá na Europa e as desigualdades sociais, de fato ou de nascença, irão adquirir, para citar Bloch, um diapasão mais humano. Será preciso ir aos Estados Unidos para, até quase os dias de hoje, deparar-se com formas de escravidão tão cruéis quanto as da Antigüidade. Contu-(p.29) do, até na América, logo passaria a ser válida a afirmação de Adam Smith de que "o trabalho feito por homens livres acaba sendo mais barato do que aquele feito por escravos". Além disso, o mesmo fenômeno iria se repetir também na América: abolida a escravidão, reduzida a possibilidade de impor aos trabalhadores livres ofícios cansativos demais, restava recorrer ao trabalho inorgânico, ao maquinismo, à organização científica. Na Europa da Idade Média, motivos sociais haviam levado à abolição da escravatura; nos Estados Unidos do final do século XIX, motivos bastante semelhantes conduziram à libertação industrial da fadiga e prenunciaram a libertação do trabalho, na era pós-industrial.
O progresso tecnológico na Idade Média e a "síndrome de Vespasiano"
Ø Hoje, o principal obstáculo à libertação do homem da escravidão do trabalho não é causado pelos atrasos da tecnologia, mas pelos atrasos da cultura. Por motivos de conveniência imediata, mas sobretudo por uma resistência às mudanças, tanto mais misteriosa quanto mais arraigada e autodestrutiva, o homem acaba não aproveitando as oportunidade de descanso que sua fértil imaginação lhe assegurou. O homo faber transgride sistematicamente os valores do homo cogitans e mais ainda do homo ludens, pois, em vez de diminuir, multiplica as razões da infelicidade humana, considerada "natural" por(p.30) muitos, e até uma ótima oportunidade de os seres humanos se penitenciarem. Ps. 30/31.
Ø A idéia fixa de Bacon, à qual dedicará todos os esforços de sua vida, "consistia simplesmente em acreditar que o saber teria que dar seus frutos na prática, que a ciência deveria ser aplicável à industria, que os homens tinham o sagrado dever de se organizar para melhorar e para transformar as condições de vida".
Para Bacon era possível na prática - e portanto socialmente obrigatório - ganhar o pão sem o suor da fronte, aplicando o trabalho intelectual à vida prática de todos os dias (commercium mentis et rei), abrindo novas áreas para a conquista das ciências, avaliando a qualidade das coisas pelo seu grau de utilidade, confiando o progresso ao trabalho de equipes científicas, usando as descobertas científicas na produção industrial. Bacon tinha a sólida convicção de que nunca nada tinha sido mais útil para a humanidade do que as recentes descobertas da pólvora, da bússola e da imprensa. Nada mais restava, portanto, a não ser progredir no caminho da "ciência ativa" e de seu contínuo aperfeiçoamento. P. 35.
Taylor e a eliminação do trabalho
Ø A grande indústria moderna surge na Inglaterra pelas idéias de Bacon, pela difusão do Iluminismo, pelo desenvolvimento científico e pela acumulação capitalista permitida pelo colonialismo. A necessidade de substituir a forma arcaica de trabalho proto-industrial por um sistema mais moderno, isto é, que produzissem mais com menos recursos humanos, surgiu por causa da crescente escassez de mão-de-obra e da exigência de trabalhadores mais motivados que não roubassem a matéria-prima, que cumprissem os prazos para a entrega de produtos acabados, que aproveitassem melhor a energia hídrica e a madeira para a combustão. Da mesma forma que no fim da Idade Média a escassez de escravos e a necessidade de trabalhadores motivados levaram à adoção de novas tecnologias e ao surgimento do modo de produção proto-industrial, no fim do século XVIII, especialmente na Inglaterra, a escassez de proletários e a exigência de subordinados mais motivados levaram à mecanização da fiação e da tecelagem, que deu origem ao modo de produção industrial. Se a mecanização e a centralização representam seu âmago, a organização científica é sua mente.
Todavia, o cerne da toda a questão continua sendo o eterno desejo humano de uma melhor qualidade de vida conquistada sempre com menos trabalho. De acordo com David S. Landes, que talvez seja seu mais respeitado historiador, a Revolução Industrial consiste naquele "complexo de inovações tecnológicas que, substituindo a habilidade humana por máquinas e o esforço físico de homens e animais por energia inanimada, possibilitaram a passagem do artesanato à manufatura,(p.39) criando assim uma economia moderna". Por meio dela, o homem dá o importantíssimo passo seguinte rumo ao sonho de Aristóteles, isto é, otimizar, quase sua anulação, o denominador contido na fórmula da produtividade P/H, ou seja, quantidade de produto dividido pelas horas/homem necessárias à sua produção. quando na fábrica totalmente robotizada da Benetton, por exemplo, for possível produzir roupa sem que nenhuma hora de trabalho humano tenha participado no ciclo produtivo, então o sonho ancestral terá sido realizado, mesmo se, por ironia do destino, os homens experimentem-no não como a libertação do trabalho, mas com o pesadelo do desemprego. Ps. 39/40.
Ø O homem de Neanderthal - quando o planeta era povoado por apenas uns 20 milhões de habitantes - vivia uma média de 29 anos e dispunha aproximadamente de 4 mil calorias por dia. Em 1750 - quando a população total do planeta tinha chegado aos 600 milhões - o homem pré-industrial dos países mais ricos tinha uma média de vida de 35 anos e dispunha de 24 mil calorias por dia. Hoje, considerando que a Revolução Industrial já se cumpriu e que a sociedade pós-industrial tomou o seu lugar, os habitantes do planeta ultrapassam os 5 bilhões e cada habitante dos países ricos vive em média 75 anos, com 300 mil calorias/dias à disposição. P. 41.
Ø Poucos gênios tiveram sobre o destino do homem, sobre sua libertação do trabalho uma influência tão profunda quanto Taylor. As suas idéias se tornaram o credo da sociedade industrial, o "código oculta" - nos dizeres de Alvin Toffler - que inspirou a conduta de povos inteiros por meio de seis princípios: a padronização dos produtos, dos processos e da necessidades; a especialização das competências e das funções; a sincronização hos horários; a centralização dos poderes e das informações; a concentração dos recursos, das atividades e das pessoas; a tend6encia ao gigantismo das corporações. O objetivo implícito do desejo de aplicar os seis princípios pela sociedade industrial não se restringia apenas ao lucro e à riqueza, mas também ao eterno sonho de produzir e consumir sem trabalhar, como expresso na fórmula(p.44) da produtividade: lucro e riqueza, no fim das contas, não representam nada mais do que a medida em que nós nos aproximamos da realização deste sonho. Ps. 44/45.
Adret: trabalhar duas horas por dia
Ø Chegou-se então a este ponto: não é o trabalho que está criando produtos, mas são os produtos que estão criando trabalho. Não se trata mais de trabalhar para produzir, mas de produzir para trabalhar. P. 58.
Desemprego será uma boa
Ø Atualmente a questão que se coloca é a seguinte: a Terceira Revolução Industrial levará à sociedade do desemprego ou à do tempo livre? Libertará os homens dos trabalhos alienados ou os alienará ainda mais com a(p.62) inatividade forçada? Levará a uma nova idade de ouro quando será possível trabalhar sempre menos, dispondo, todavia, de uma massa de riquezas sempre maior, ou acabará por condenar alguns ao desemprego e outros à improdutividade?"
A incrível capacidade das novas tecnologias em substituir o trabalho humano, o custo decrescente dos produtos, a saturação do mercado no que diz respeito aos automóveis, eletrodomésticos e assim por diante, a real possibilidade de trabalhar menos produzindo e ganhando mais (na Alemanha, entre 1950 e 1975, o poder aquisitivo por habitante quadruplicou, enquanto a jornada de trabalho diminuiu em 23%) se constituem - segundo Bosquet - em outros tantos fatores a favor de uma grande mudança, que leve à drástica redução dos horários, a uma melhor distribuição dos frutos do progresso tecnológico, à criação de um novo equilíbrio entre o tempo de trabalho e o tempo livre, concedendo a todos uma vida mais tranqüila e uma atividade mais gratificante.
Porém, os países ricos optaram por outro caminho. Como o problema real deixou de ser o da produção para ser o da distribuição equânime tanto da riqueza como do trabalho necessário a produzi-la, eles fazem de conta que o problema principal é tornar ainda mais rápida a produção de bens. É claro que o resultado é um aumento do desemprego, cuja eventualidade não é considerada como premissa de uma alegre libertação do trabalho, mas como um espantalho para manter os trabalhadores disciplinados, com um rendimento eficiente e um comportamento competitivo.(p.63)
"Para que os alicerces da ordem vigente não sejam abalados, é melhor que não se divulguem estas coisas. Será dito às pessoas que há o perigo do trabalho vir a faltar em vez de esclarecer que não é mais preciso se matar de tanto trabalhar. Será dito às pessoas que o monstro do desemprego está solto, em vez de explicar como e por que teremos sempre mais tempo livre. As promessas de automação serão apresentadas como ameaças ao posto de trabalho, tentar-se-á atiçar os trabalhadores para que briguem entre si pelos raros postos de trabalho que sobraram, em vez de estimulá-los a batalhar juntos por outra realidde econômica. De fato, o desemprego não é apenas uma conseqüência da crise mundial, é também uma arma para reinstituir a obediência e a disciplina nas empresas(...). Agora , uma coisa é certa: ninguém fará carreira na profissão que aprendeu; essa profissão será transformada, simplificada, desqualificada ou meramente suprimida pela microeletrônica. Todos, somos potencialmente um supranumerário". Ps. 63/64
"Workers of the word, be warned!"
Ø Três meses depois da publicação do artido de Accornero, a revista Newsweek (14 de junho de 1993) sai com a palavra Jobs na capa inteira e as frases bastante significativas: Trabalhadores do mundo, previnam-se! O futuro terá menos empregos para oferecer à classe média. As carreiras vitalícias serão raras. O treinamento será constante. P. 68.
Ø Como já foi dito, durante muitos anos, se por um lado a tecnologia subtraiu postos de trabalho aos seres humanos, por outro conseguiu criar novos postos em maior escala. Para projetar e para construir máquinas, foram de fato necessários outros trabalhadores. Além disso, a riqueza obtida pelas máquinas foi revestida em outras empresas ou foi gasta no consumo; nos dois casos, direta ou indiretamente, contribui para criar novos trabalhos. Mas desde a chegada da eletrônica, esse equilíbrio foi rompido e os postos absorvidos pelas máquinas deixaram de ser substituídos por novos investimentos e por novos empregos. P. 70.
Ø Porém, como as máquinas por mais sofisticadas e inteligentes que sejam nunca poderão substituir o homem no trabalho criativo, segundo a Newsweek a aventura da busca de trabalho terá maiores probabilidades de ser bem sucedida quanto mais o eventual trabalhador for capaz de oferecer serviços do tipo intelectual, científico, artístico, adequados às necessidades cada vez mais mutáveis e personalizadas dos consumidores. "O futuro" - diz a Newsweek, com o consentimento de Accornero - "pertence(p.71) àqueles que serão capazes de usar a head muito mais do que as hands", isto é, pertence a quem se ocupar de análises de sistemas, de pesquisa, de psicologia, de marketing, de relações públicas, de tratamentos de saúde, de viagens, de jornalismos e de formação, muito mais do que(p.71) de guerra, frigoríficos, petróleo ou de sapatos. Seja nos serviócs, seja na induústria, a transição da produção padronizada para a personalizada comporta uma demanda maior por Skilled-people; as pessoas que produzem idéias são cada vez em maior número do que as pessoas que produzem coisas. A informação e o conhecimento oferecem a quem os detém muito mais oportunidades. Definitivamente, "o desafio será aumentar a eficiência do conhecimento". Ps. 71/72.
Ø ... há uma tendência a mudar de carreira pelo menos seis vezes numa vida, não é preciso mais preparar os jovens para uma carreira específica, mas sim para um vida ativa na sua plenitude, tornando-os pesquisadores, cientistas, artistas, atletas, jornalistas: "Se você aprender alguma coisa hoje e continuar a fazê-la daqui a cinco anos, a única coisa da qual você pode ter certeza é que você estará fazendo algo errado". P. 72.
O masoquismo dos indefesos
Ø Logo no começo destas reflexões nós nos perguntávamos como é possível que os gregos, que sem dúvida conheciam as noções básicas indispensáveis para dar o salto tecnológico dado pela humanidade muito mais tarde, na Idade Média e na sociedade industrial, se tivessem privado do progresso. Relembramos explicações de natureza econômica, sociológica, psicanalítica que, entretanto esclareceram apenas parte da questão.
Agora nós nos perguntamos como é que os cidadãos dos países pós-industriais, desde os Estados Unidos até a Europa e o Japão, mesmo tendo descoberto sistemas tecnológicos tão poderosos que permitem a libertação propriamente dita do trabalho, teimem em preservar um comportamento social surgido em função da sociedade rural e da industrial, com horários de trabalho feitos para matar uns poucos de cansaço e deixar os outros desempregados. P. 75.
> Fernando IV costumava dizer que "é mais fácil perder um reino do que um hábito". A humanidade prefere hoje em dia perder o reino da felicidade do que o hábito de trabalhar. Para derrotar mais rapidamente o sadomasoquismo dos incansáveis, Keynes sugere que nos asseguremos de quatro pré-requisitos dos quais depende o ritmo necessário para alcançar nosso destino de beatitude econômica: "a nossa capacidade de controle demográfico, a nossa determinação em evitar guerras e conflitos civis, a nossa vontade de confiar à ci6encia a gestão das questões que são de sua estrita competência, e a taxa de acumulação enquanto determinada pela margem entre produção e consumo. Uma vez atingidos os três primeiros pontos, o quarto resultará por si". Nesse meio tempo, recomenda Keynes, é preciso encorajar e experimentar "as artes da vida" tanto quanto as atividades que(p.77) hoje definimos como "compromissadas". Mas, acima de tudo, é preciso guardar-se de "supervalorizar o problema econômico ou sacrificar às suas necessidades atuais outras questões de maior e mais duradoura importância..
O sadismo dos machistas
Ø Portanto, um trabalho sui generis, ao qual não se podem aplicar categorias como greves e desemprego. Aliás, quando se fala de desemprego, faz-se sempre e somente menção ao trabalho produtivo. E é esse o tipo de(p.80) trabalho que está diminuindo a olhos visto, porque a riqueza não é mais diretamente proporcional ao tempo de fadiga humana que se gasta para produzi-la, mas diretamente proporcional à quantidade e qualidade de saber contido nos apetrechos tecnológicos aos quais é delegado o processo produtivo. Ao contrário, o trabalho reprodutivo, por não poder ser facilmente delegado à tecnologia (tanto assim que ocupa cerca de 80 horas por semana das donas de casa dos países em desenvolvimento e cerca de 56 horas semanais das donas de casa dos países desenvolvidos), não diminui nem um pouco. Muito pelo contrário, aumenta com o crescimento das necessidades individuais e da complexidade social. p. 81.
Ø Hoje quando a relação direta entre aumento da produção e aumento do emprego está definitivamente chegando ao fim, como é que iremos administrar essa situação inédita? Até Dahrendorf se fez esta pergunta: "A sociedade do desenvolvimento foi também uma sociedade do trabalho. A vida dos homens era construída em torno do trabalho. A educação era orientada como preparação para o mundo do trabalho, o tempo livre como descanso para novo trabalho, a aposentadoria como recompensa por uma vida de trabalho. Além disso, o trabalho não era apenas considerado necessário para ganhar com o que viver, mas também como valor em si. Havia um orgulho no próprio trabalho e nas realizações no trabalho. A preguiça era severamente estigmatizada. Pode-se até mesmo dizer que a figura do homem trabalhador representou o ideal desta sociedade. Resta-nos perguntar: o que irá acontecer quando - para citar Hannah Arendt -, à sociedade do trabalho, o próprio trbalho vir a faltar?
Acontece, respondemos nós, que a humanidade terá de escolher entre um sistema assustador, assombrado pelo desemprego, e um sistema alegre, liberto do trabalho. Então, por que será que, até hoje, essa humanidade parece preferir a primeira alternativa? Porque - sugere Ravioli - a Segunda alternativa fatalmente implicaria "dar a cada um o tempo suficiente para suprir as necessidades da própria reprodução, e, portanto, proporcionar as condições para distribuir, de forma diferente e menos perversa, a carga de atividades familiares e domésticas(p.82) que recaem completamente sobre os ombros das mulheres, não importa se empregadas ou não no mercado (...) . Pois, em última análise, é esta a questão: relacionar de forma direta as duas funções sociais historicamente atribuídas aos dois sexos, abranger em um único olhar o masculino do produzir e o feminino do reproduzir; lê-los juntos e juntos decodificá-los no complicado entrelaçamento das determinações recíprocas que os une no contexto de uma realidade antropológica dada. Trata-se de aceitar ambos como partes integrantes do 'humano' que a história separou em dois papéis, duas identidades opostas e simétricas; enfim, de almejar a recuperação do indivíduo por inteiro".
Isso posto, nessas belas reflexões da Carla Ravaioli estão a Segunda causa de uma resistência tão difundida à libertação do trabalho, sobretudo nos lugares onde o peso do trabalho é mais avassalador. reduzir o horário de forma drástica implicaria fatalmente a necessidade de colocar o problema do emprego levando em conta não apenas o trabalho produtivo que está em queda, mas também o trabalho reprodutivo que não diminui nunca; implicaria fatalmente uma redistribuição das atividades para que os homens assumam também uma parte do trabalho doméstico, atualmente imposto às mulheres, e renunciem a uma parte do poder que a organização industrial lhes concedeu com exclusividade. Mas, afinal de contas, por que os homens, educados exclusivamente para a luta pelo poder, deveriam de repente achar agradável uma vida não mais voltada para a eficiência, a carreira, a competitividade? Ps. 82/83.
O americano, o japonês e o leão
Ø Podemos nos encaminhar rumo à conclusão de nosso discurso. A demanda pelo trabalho aumenta porque cresce o número dos seres humanos, aumenta o tempo de vida, ingressam no mercado de trabalho novas forças ativas que antes não participavam (mulheres, aposentados, inválidos, etc.); além disso, a facilidade dos deslocamentos físicos faz com que cheguem aos mercados mais ricos multidões de trabalhadores oriundos de mercados mais pobres. Por outro lado, a disponibilidade de trabalho diminui seja porque as novas tecnologias absorvem ofícios antes desempenhados por trabalhadores e por funcionários, seja porque o progresso das ci6encias da organização dos fatores produtivos. P. 84.
Ø O capitalismo, como nós o conhecemos, é um sistema histórico com seus méritos e seus desméritos, nascido num dado momento do desenvolvimento humano por circunstâncias ainda em grande parte desconhecidas e que, num outro dado momento, irá morrer, dando lugar a novas e talvez melhores formas de convivência. Tão histórico quanto a organização capitalista do trabalho é o conceito do desemprego que, antes da industrialização, era um total desconhecido. Esta organização, deixada por sua conta, tende a dividir claramente a população. Por um lado, trabalhadores hiperocupados até o enfarte, que dedicam a seus ofícios todo seu tempo de vida; do outro, os desempregados completamente excluídos do mundo da produção e, portanto, da sociedade civil, pois o trabalho é considerado o único passaporte para a cidadania. Esse exército de metecos modernos aumenta a olhos vistos, tanto nos países avançados como nos pou-(p.85) cos países desenvolvidos e, em poucos anos, pode tornar-se a maioria da população. Talvez, então, em vez de pagar o trabalho, e não o tempo livre, como acontece hoje, será pago o tempo livre e se deixará trabalhar gratuitamente aqueles poucos que ainda teimam em fazê-lo. Ps. 85/86
Ø Será então preciso dispor de pessoas altamente motivadas, para realizar tarefas criativas, e qualificadas para gerir sozinhas o próprio tempo, reduzindo ao mínimo as barreiras burocráticas à criatividade. Será preciso experimentar novos modelos de vida em que o trabalho físico e executivo residual seja confiado a todos os que tenham condições de desenvolvê-lo, obedecendo a novos horários e novos ritmos fixados para garantir o equilíbrio entre a oferta e a procura; a riqueza produzida pelas máquinas terá de ser redistribuída de forma equânime entre todos os cidadãos; a riqueza e os serviços produzidos(p.86) pelo intelecto terão de proporcionar aos criadores todas as satisfações necessárias para que se sintam gratificados pelas idéias já produzidas e para motivá-los a produzir outras mais. Será preciso reeducar toda a população não só para o trabalho do qual se está libertando mas também para as atividades criativas, para o ócio ativo (o "desemprego criativo", diria Ivan Illich) ao qual terá de se acostumar.
Quanto a verdadeira medida da riqueza não for mais o dinheiro disponível para o próprio consumo do supérfluo, mas o tempo do qual se dispõe para atividades livremente escolhidas, quando formos educados - como o Sócrates descrito por Platão no Fedro - para desfrutar intensamente das pequenas alegrias da vida diária e transformar minutos que passam em momentos que duram, então os problemas do emprego e do desemprego serão apenas uma feia lembrança e a libertação da fadiga terá se alastrado até abranger a total libertação do trabalho. Ps. 86/87.
Apêndice
Perspectivas econômicas para os nossos netos - Por John Maynard Keynes
Ø Estamos neste momento sofrendo de um profundo ataque de pessimismo econômico. É bastante comum ouvirmos as pessoas dizerem que a época do enorme progresso econômico que caracterizou o século XIX está chegando ao fim; que agora a rápida melhora da qualidade de vida terá de se tornar mais lenta, pelo menos na Grã-Bretanha; que na próxima década é mais provável que a prosperidade decline em vez de florescer.
Considero que esta seja uma interpretação completamente falha do que está acontecendo. Não estamos padecendo dos achaques da velhice, mas sim dos distúrbios de um crescimento feito de mutação rápidas demais e das dores da readaptação de um período econômico para outro. A eficiência técnica se intensificou progressivamente num ritmo mais rápido do que aquele com o qual conseguimos solucionar o problema de absorver a mão-de-obra. A melhoria da qualidade de vida foi um pouco rápida demais; o sistema bancário e monetário do mundo impediu que a taxa de juros caísse com a velocidade necessária a um reequilíbrio. P. 89.
Ø A depressão que domina o mundo, a atroz anomalia do desemprego num mundo repleto de necessidades, os erros desastrosos que cometemos nos deixam cegos diante do que está acontecendo sob a superfície, isto é, diante do significado das verdadeiras tendências do processo. Quero na verdade dizer que as duas vertentes opostas de pessimismo, que hoje em dia provocam no mundo tamanho barulho, vão se provar errôneas no decorrer de nossa geração: o pessimismo dos revolucionários, que pensam que as coisas andam mal que nada poderá nos salvar a não ser uma reviravolta violenta; e o pessimismo dos reacionários, que consideram o equilíbrio da nossa vida eco(p.90) nômica e social instável demais para que possamos arriscar novas experiências. Ps. 90/91.
Ø Desde os tempo mais remotos dos quais temos conhecimento - digamos de dois mil anos antes de Cristo -, até o início do século XVIII, o nível de vida do homem médio, que vivia nos centros civilizados do mundo não passou por grandes mudanças. Com certeza, teve altos e baixos. Aparecimento de epidemias, carestias, guerras e intervalos áureos. Mas nenhum salto para a frente nenhuma mudança brusca. Nos quatro mil anos que se concluíram mais ou menos por volta do ano de graça de 1700, alguns períodos conseguiram registrar uma melhora de 50% (no melhor dos casos de 100%) em relação aos outros.
Essa taxa lenta de progresso, ou melhor, essa falta de progresso, tinha duas razões de ser: a ausência visível de invenções técnicas relevantes e a inexist6encia de acumulação do capital.
A ausência de grandes invenções técnicas entre a era pré-histórica e os tempos relativamente modernos é realmente digna de nota. Quase tudo aquilo de substantiva importância que o mundo possuía no início da Idade Moderna já era conhecido pelo homem desde o alvorecer da história: a linguagem, o fogo, os mesmos animais domésticos que temos hoje, o trigo, a cevada, a videira e a oliveira, o arado, a roda, o remo, a vela, as peles, o teci-(p.91) do e o pano, os tijolos e a cerâmica, o ouro, a prata, o cobre, o estanho, o chumbo e o ferro, que a eles veio se acrescentar, antes de 1000 a.C., o sistema bancário, a arte de governar, a matemática, a astronomia e a religião. Não temos conhecimento de quando o homem teve pela primeira vez essas coisas na mãos.
Em uma dada época, anterior ao início da História, talvez durante um dos intervalos favoráveis que precederam a última época glacial, deve ter existido uma era de progresso e de invenções que se possa comparar à que vivemos hoje. Mas, no decurso de quase toda a História propriamente dita, nunca se viu coisa igual. Ps. 91/92.
Ø A partir do século XVI, começou e continuou, em ininterrupto crescimento até o século XVIII, a grande era das inovações científicas e técnicas que, a partir do início do século XIX, resultaram em avanços inacreditáveis: carvão, vapor, eletricidade, petróleo, aço, borracha, algodão, indústrias químicas, máquinas automáticas e sistemas de produção de massa, telégrafo, imprensa, Newton, Dar-(p.93) win, Einstein e milhares de outras coisas e homens famosos e conhecidos demais para serem lembrados. Ps. 93/94.
Ø Chego à conclusão de que, deixando de lado a eventualidade de guerra, de crescimentos demográficos excepcionais, o problemas econômico pode ser solucionado, no decorrer de um século. Isto quer dizer que o problema econômico não é, se olharmos para o futuro, o problema permanente da espécie humana.
Mas por que, poderão perguntar, isso é tão desconcertante? É desconcertante porque, se em vez de olhar para o futuro, nós nos voltarmos para o passado, veremos que o problema econômico, a luta pela subsistência sempre foi, até o presente momento, o problema principal, o mais premente para a espécie humana, aliás, não apenas para a espécie humana, mas para todo o reino biológico, desde as origens da vida em suas formas mais primitivas.(p.96).
Assim, nossa evolução natural, com todos os nossos impulsos e os nossos mais profundos instintos, aconteceu com o intuito de solucionar o problema econômico. Uma vez solucionado, a humanidade ficaria privada do seu objetivo tradicional.
Isso será um bem? Se acreditarmos, por pouco que seja, nos valores da vida, descortina-se a possibilidade que se torne um bem. Todavia, eu penso com pavor no rendimento de hábitos e instintos enraizados nele por gerações incontáveis e cujo abandono lhe será proposto no decorrer de algumas décadas.
Para usar a linguagem moderna, talvez devêssemos esperar por um "colapso nervoso" generalizado? Já tivemos uma pequena experiência do que eu quero dizer, isto é, um colapso nervoso semelhante ao fenômeno já bastante freqüente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos entre as mulheres casadas das classes abastadas, mulheres em sua maioria infelizes, que a riqueza privou das tarefas e das ocupações tradicionais; mulheres que não conseguem se interessar o bastante pela cozinha, pela limpeza, pela costura, quando lhes falta o estímulo da necessidade econômica e que, contudo, são totalmente incapazes de inventar qualquer coisa de mais divertido.
Para quem sua pelo pão de cada dia, o tempo é um prazer cobiçado até o momento em que o alcança. Lembremos o epitáfio que uma velha faxineira escreveu para sua lápide:
"Não vistam luto, amigos, não chorem por mim, que finalmente não farei nada, nada pela eternidade afora".
Aquilo era ser paraíso. Como outros que aspiram ao tempo livre, a faxineira imaginava apenas o quanto seria(p.97) lindo passar o tempo como espectador. Havia mais dois outros verbetes no epitáfio:
"O paraíso ressoará de salmos e de músicas suaves, mas eu não farei esforços para cantar".
Todavia, a vida será suportável somente para os que participam do canto. E quão poucos de nós sabem cantar!
Assim pela primeira vez desde sua criação, o homem estará diante de seu verdadeiro e constante problema: como empregar sua libertação das agruras econômicas mais prementes, como empregar o tempo livre que as ciências e os juros compostos lhe granjearam, para viver bem, de forma agradável e sábia?
Os incansáveis e decididos criadores da riqueza poderão levar todos nós junto com eles para o seio da abundância econômica. Porém, somente poderão gozar de abundância, quando esta chegar, aqueles que souberem manter viva a arte da vida e levá-la à perfeição, e que não se venderem em troca dos meios de vida.
No meu entender, entretanto, não existe um único país ou povo que possa encarar sem pavor a era do tempo livre e da abundância. Aliás, por tempo demais fomos treinados a fatigar em vez de gozar. Para o homem comum, desprovido de talentos especiais, o problemas de se empenhar numa ocupação é assustador, sobretudo se não tem mais raízes na terra, nos costumes ou nas convenções prediletas de uma sociedade tradicional. A julgar pela conduta e pelos resultados das classes ricas de hoje, em que qualquer lugar do mundo, a perspectiva é realmente deprimente. Essas classes, na verdade, são, por assim dizer, a nossa vanguarda. São os que exploram para nós a terra prometida e nos preparam o terreno. E, na sua maior par-(p.98) te, os que têm uma renda independente, mas nenhum compromisso, vínculo ou associação, foram submetidos, assim me parece, a uma derrota fragorosa na tentativa de resolver a questão que estava em jogo.
Tenho certeza de que, com um pouco mais de experiência, nós nos serviremos do nosso generoso dom da natureza de forma completamente diferente dos ricos de hoje e traçaremos para nós um plano de vida totalmente diverso, que não tem nada a ver com o deles. Ainda por muitas gerações, o instinto do velho Adão continuará tão forte dentro de nós que precisaremos de "algum" trabalho para ficarmos satisfeitos. Faremos, para servir a nós mesmos, mais coisas do que costumam fazer os ricos de hoje e ficaremos mais do que contentes de ter obrigações, deveres e rotinas a cumprir. Mas, além disso, teremos de dnos empenhar com cuidado para compartilhar desse "pão" a fim de que o pouco trabalho que ainda resta seja distribuído entre o maior número possível de pessoas. Turnos de três horas e semana de trabalho de quinze horas podem manter o problema sob controle por um longo período. Três horas de trabalho por dia são de fato mais do que suficientes para apaziguar o velho Adão que está em cada um de nós.
Teremos de esperar por mudanças também em outras áreas. Quando a acumulação de riqueza deixar de ter um significado social importante, acontecerão mudanças profundas no código moral. Teremos de saber nos libertar de muitos dos princípios pseudomorais que supersticiosamente nos torturam por dois séculos e pelos quais enaltecemos como virtudes máximas as qualidade humanas mais desagradáveis. Precisaremos ter a coragem de atribuir à motivação "dinheiro" seu verda-(p.99) deiro valor. O amor ao dinheiro como propriedade, diferente do amor pelo dinheiro como meio de aproveitar dos prazeres da vida, será reconhecido por aquilo que é: paixão doentia, um pouco repugnante, uma daquelas propensões meio criminosas e meio patológicas que, com calafrio, costumamos confiar a um especialista em moléstias mentais. Ficaremos, finalmente, livres para nos desfazermos de todos os hábitos sociais e das práticas econômicas referentes à distribuição da riqueza e às recompensas e penalidades econômicas que hoje mantemos a todo custo, apesar de serem desagradáveis e injustas, da sua inacreditável utilidade em fomentar a acumulação do capital. Naturalmente, continuarão a existir muitas pessoas dotadas de ativismo e do senso de compromissos intensos e insatisfeitos, que cegamente irão perseguir a riqueza a não ser que consigam achar substituto válido. Mas não teremos mais a obrigação de louvá-las e encorajá-las porque saberemos perscrutar, mais a fundo do que hoje nos é permitido, o significado real desse "compromisso".
"Compromisso", aliás, significa preocupar-se mais com os futuros resultados de nossas ações do que com sua qualidade ou com seu efeito imediato sobre nosso meio. O homem "comprometido" sempre tenta assegurar às suas ações uma imortalidade espúria e ilusória, projetando para o futuro o interesse que nelas coloca. Não ama seu gato nem todos os gatinhos dele, mas ama os filhos dos gatinhos e toda sua geração, até que exista a estirpe dos gatos. Para ele, a geléia não é uma geléia a não ser que seja a de amanhã, nunca a de hoje. E assim, projetando para o futuro sua geléia, tenta assegurar imortalidade ao trabalho com que foi preparada. Ps. 96/97/98/99/100.
Ø Talvez não seja por acaso que a espécie humana que mais se empenhou para enraizar a promessa de imortalidade no coração e na natureza de nossas religiões seja também a que mais do que qualquer outras se empenhou pelos princípios dos juros compostos e a que mais está "comprometida" com as instituições humanas.
Assim, vejo os homens livres se voltarem para alguns dos princípios mais sólidos, autênticos e tradicionais, da religião e da virtude: a avareza é um vício; a prática da usura, um crime; o amor pelo dinheiro, desprezível; quem menos persegue o dinheiro trilha verdadeiramente o caminho da virtude e da profunda sabedoria. Daremos novamente mais valor aos fins do que aos meios e preferiremos o bem ao útil. Prestaremos homenagem a quem souber nos ensinar a acatar a hora e o dia com virtude, àquelas pessoas maravilhosas capazes de extrair um prazer direto das coisas , como dos lírios do campo que não semeiam e nem tecem.
Mas cuidado! O momento ainda não é chegado. Pelo menos outros cem anos deveremos fingir para nós mesmos e para todos os outros que o certo está errado e o errado está certo, porque aquilo que está errado é útil e o que é certo não é. Avareza, agiotagem, prudência têm de ser nosso lema ainda por um pouco de tempo, porque somente esses princípios podem nos tirar do subterrâneo da necessidade econômica para a luz do dia. P. 102.
Ø O ritmo com o qual podemos alcançar o nosso destino de beatitude econômica dependerá destes quatro fatores: a nossa capacidade de controle demográfico, a nossa determinação em evitar guerras e conflitos civis, a nossa vontade de confiar à ciência a gestão das questões que são de sua estrita competência, e a taxa de acumulação enquanto determinada pela margem entre produção e consumo. Uma vez atingidos os três primeiros pontos, o quarto virá por si.
Será oportuno, no entanto, se engajar em alguns modestos preparativos no que diz respeito ao nosso destino, experimentando as artes da vida tanto quanto as atividades que hoje definimos como "empenhadas".
Mas, acima de tudo, evitemos supervalorizar o problema econômico ou sacrificar às suas necessidades atuais outras questões de maior e mais duradoura importância.
Deveria ser um problema para especialistas, como tratar dos dentes. Se os economistas conseguissem ser vistos como gente humilde, de competência específica, tal como os dentistas, seria maravilhoso. P. 103.