sábado, 16 de agosto de 2008

ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2001.

O termo ofício remete a artífice, remete a um fazer qualificado, profissional. Os ofícios se referem a um coletivo de trabalhadores qualificados, os mestres de um ofício que só eles sabem fazer, que lhes pertence, porque aprenderam seus segredos, seus saberes e suas artes. 18
O saber-fazer, as artes dos mestres da educação do passado deixaram suas marcas na prática dos educadores de nossos dias. 18
Uso o termo “ofício de mestre” tentando aproximar-me destes processos que me parecem extremamente significativos para a construção social do magistério básico. 21
O direito à educação nunca será garantido por um clube de amigos. Já temos amigos e amigas da cultura, de animais de estimação ameaçados, de crianças de rua, de órfãos e agora a mídia e os governos lançam a campanha Amigos da Escola! Mais um capítulo de nossa longa história, de sua descaracterização. A educação escolar tratada como uma terra vadia, sem cercas, facilmente invadida por aventureiros ou amigos. Mui amigos! Qualquer um entende, palpita sobre a escola, aceita ser professor(a), secretário(a) ou gestor de educação. Paralelo a esse processo tivemos a descaracterização dos seus profissionais, ou a desprofissionalização dos mestres de escola. Qualquer um que domine um conhecimento e uma técnica, poderá ensina-los como um biscate e um complemento a seus salários. 22/23
As artes de educar e o domínio da teoria pedagógica se tornaram desnecessários diante de um campo descentralizado. A Lei nº 5692 de 71 descaracterizou a escola e os currículos de formação. 23
Somos, não apenas exercemos a função docente. Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de maneira tão apropriada. Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. 27
No final dos anos 70 houve uma opção por definir-se como trabalhadores em educação. Trabalhadores como qualquer outros, caracterizados pelos traços do trabalho. Mais recentemente a identificação e valorização como profissionais passou a prevalecer no discurso. A identificação como professor-trabalhador ou como profissional não parece ter redefinido a auto-imagem, nem mexido na imagem social. 28
A competência em um determinado recorte da ação social é colocada como um dos traços da profissionalização. Entretanto nem todas as profissões são reconhecidas pela competência. A imagem social ou o reconhecimento social é mais importante do que a competência em si. 29 o autor comenta que o médico já é reconhecido por ser médico e o professor por mais competente que seja jamais o será em igual intensidade.
A qualificação aumentou consideravelmente nas últimas décadas não obstante o estatuto profissional de categoria continua indefinido, ainda imerso em uma imagem social difusa, sem contornos. 29
Os recortes do conhecimento nos atraíam, sobretudo nas décadas de 60 e 70, tempos de desenvolvimentismo, de especialização profissional, de departamentalização acadêmica, da produção e da pesquisa, tempos de valorização dos especialistas no mercado e do atrelamento da universidade a até do ensino fundamental e médio às competências e especializações do mercado. 31
Se não aceitarmos ser vocacionados por Deus para o magistério, não deixamos de repetir que a educação é um dever do Estado e um direito do cidadão, logo o magistério é um compromisso, uma delegação política. 33
O imaginário social configurou o ofício de mestre com fortes traços morais, éticos. No terreno do dever. Há figuras sociais de quem se espera que façam bem, com eficiência. 37
A visão tecnicista da história sempre foi empobrecedora no campo da Educação Básica. Simplifica demais as análises de um campo social e cultural tão complexo e termina por adiar a solução dos problemas que pretende resolver reduzindo-os ao domínio de técnicas. 38
Educar e instruir são atos éticos e políticos. 40
Ser mestre, educador é um modo de ser e um dever-ser. Ser pedagogos de nós mesmos. 42
Múltiplas linguagens e expressões humanas são exploradas saindo dos mecanismos estreitos do discurso, da apostila, dos receituários. 46
Refletir a prática, sim, eleger temas, sim, mas não esquecer dos sujeitos, de seus tortuosos percursos humanos que não cabem num tema. O transbordam. 47
Educar o direito e dever à indignação diante da desumanização da infância pode ser uma matriz formadora de pedagogos. 48
Neste trecho o autor faz referência a Paulo Freire.
Educar como adestramento, como moralização para termos um povo ordeiro e trabalhadores submissos. Esta visão de educação é bastante divulgada. A escola, o ensino, a aprender as letras nos lembram processos sociais menos conformadores, mais libertadores. 50
Ao longo de nossa história há resistências para que o povo vá à escola, mas há maiores resistências para que seja instruído, prefere-se que seja educado em uma ambígua e adestradora concepção de educação. 51
Reduzir o papel da escola fundamental e média a ensinar é enfatizar dimensões docentes, ensinantes, e freqüentemente esquecer dimensões formadoras. 51
O ideal da humanidade vem variando com o avanço civilizatório, com as lutas pelos direitos. 53
A relevância da escola está em que essa imitação, esse diálogo de gerações não se dá de maneira espontânea, como em outras relações e espaços sociais, mas de maneira pedagógica, intencional, cuidadosa. 54
O fracasso do ofício de mestre quando situado nesse nível reflete o fracasso de nossa civilização, de nossa cultura. Reflete que à nossa infância, adolescência e juventude não está sendo roubado e negado apenas o direito a conhecer a literatura e a escrita, as conta, o saber científico e tecnológico... está sendo roubada a vontade de saber, de experimentar, de ser alguém. Está sendo negada a matriz fundante de todo o processo educativo. Está sendo destruído o sentido de nosso ofício. De toda humana docência. 57
A escola pode ser menos desumana que do que a rua, a moradia, a fome, a violência, o trabalho forçado, mas reconheçamos, ainda, as estruturas, rituais, normas, disciplinas, reprovações e repetências na escola são desumanizadoras. 59
O ser humano como problema de si mesmo, como problema da educação. Assumir a educação como humanização. 62
Recuperar a humanidade roubada supõe ainda que nós, adultos, nos revelamos tão humanos quanto os educandos. Nosso ofício é revelar as leis da natureza, a produção do espaço, da vida, ensinar matérias...mas sobretudo revelar-nos às novas gerações, revelar a humanidade, a cultura, os significados que aprendemos e que vêm sendo aprendidos na história do desenvolvimento cultural. 66
Os novos paradigmas das ciências tocam nos conteúdos da docência e terminam pondo em xeque a própria docência. Somos o que ensinamos. 71
A docência repetitiva de saberes fechados não estimula a pesquisa, nem a leitura e o embate, e torna-se um dos processos mais desqualificadores. Reduzir o professor e a professora a meros aulistas de saberes fechados é desqualificador. 74
A Lei 5692, dos tempos autoritários, definiu com rigidez as cercas, gradeou o conhecimento e legitimou uma imagem estreita da docência. 77
Temos gerações de docentes filhos e filhas da Lei 5692/71 e da tecnocracia, do autoritarismo, da modernização produtiva, do modelo científico utilitário, e agora do pensamento único neoliberal. O entulho desses tempos ainda invade os pátios das escolas e dos cursos de formação, das grades, do ordenamento escolar, dos conteúdos e das auto-imagens pessoais e profissionais. 77
...desde a Lei 5692/71 os profissionais da Escola Básica são (de)formados, licenciados para cumprir esse papel de ensinantes apenas e não educadores. 81
Desde a década de 80 as áreas do conhecimento passaram por um repensar-se, não tanto repensar-se, não tanto repensar as fronteiras que as cercam, mas o que se planta em cada área. 85
A imagem docente consolidada pela Lei nº 5692/71 como proprietário de um saber de área, como licenciado nesse saber, como membro de uma estrutura gradeada, parcelada do conhecimento, como senhor de sua matéria, de sua carga horária, de suas aulas, de suas decisões, não foi radicalmente questionada, apesar desse movimento de renovação das áreas em associações e congressos. 89
Veremos como os PCNs não saem desse mesmo foco, reproduzem o mesmo percurso: vão da caracterização de cada área do conhecimento na pesquisa e produção teórica para seu ensino na escola. 91
Os PCNs são mais do que parâmetros curriculares [...] e, sobretudo, não conseguem fugir a concepções e perfis de educador(a), de infância, adolescência e juventude. 94/95
Cabe fazer uma leitura dos PCNs como uma tentativa de legitimar o movimento das últimas décadas para repensar os saberes fechados e incorporar saberes mais abertos. 95
Os PCNs não fogem a esse momento confuso sobre o papel social e cultural da Educação Básica e terminam deixando os docentes no meio de perfis desencadeados, no meio de um tiroteio. Haverá mortos e feridos. 100
A ação, a práxis, o trabalho como princípios educativos faz parte da tradição pedagógica mais permanente. A educação como processo de produção e não de mera inculcação. 114
Os traços de personalidade, de ser humano se aprendem vendo, convivendo. Pelo estágio-contágio entre humanos. Os valores, o dever moral de ser professor (a) se aprendem no lento convívio, exemplar dos “bons” ou “maus” professores e com nossa cumplicidade de aprendizes. 125
A imagem que a sociedade nos passa do magistério como uma ocupação fácil, feita mais de amor, de dedicação do que de competências, essa imagem desastrosa, mas tão divulgada, vem colar com a auto-imagem de despreparo que foram acumulando os adolescentes e jovens dos setores populares. 127
Nós professores precisamos surpreender-nos com nós mesmos, sair da crítica pesada e agoniante tão repetida nas últimas décadas que só vê negatividade na escola e, por extensão, no professor público. 138
As transgressões pedagógicas podem ser interpretadas como tentativas individuais de driblar, nos interstícios dos regulados tempos escolares, a hegemonia dos objetos, a redução das relações pedagógicas a relação de objetos. 141
Normatizar o cotidiano da escola é a solução mais tranqüila para os gestores e técnicos e para a direção também e até para os professores. O que está em jogo é uma determinada visão da educação e do educador. 141
Ser professor é muito mais ser profissional da prática do que de discursos, apesar de darmos tanta importância à fala na sala de aula. A escola não se define basicamente como um lugar de falas, mas de práticas, de afazeres. E os mestres, apesar de se identificarem como docentes, proferem práticas mais do que falas. Se afirmam e são reconhecidos socialmente por seus afazeres, tão iguais. 152
Faz parte de nossa tradição política essa permanente cobrança da escola e dos docentes para uma permanente reciclagem de sua imagem. 154
A escola é um elo nessa corrente entre a memória coletiva, o presente e o futuro. Nos debatemos com “ensinar o presente, o passado e o possível”. 155
A preocupação de tantos educadores em recuperar as dimensões mais formadoras os leva a reencontrar a centralidade das suas práticas, de sua condição de produtores e dos educandos como produtores também. 156
Tenho insistido que desde que as palavras pedagogo, pedagogia foram inventadas elas representam uma relação e interação de gerações, de papéis. Essa relação está no cerne de toda ação educativa e está na origem de nossa identidade social. 163
Tentaremos encontrar tempos para que aprenda a leitura, a escrita e as contas apropriadas a sua idade, à adolescência, porém não o privaremos do convívio com seus semelhantes. O respeitaremos em seu tempo cultural, cognitivo, corpóreo, identitário. 164
Pesquisar juntos, produzir algo juntos é enriquecedor. Porém não é apenas essa a interação que se espera para que aconteça um processo formador. 167
As novas tecnologias poderão transmitir conhecimentos, competências, informações com maior rapidez e eficiência do que o professor, porém um vídeo, uma parabólica, um computador... não darão conta do papel socializador da escola, do encontro de gerações, da intersubjetividade, do aprendizado humano que se deu sempre no convívio direto de pessoas, nas linguagens e nas ferramentas da cultura, nos gestos, no símbolos e nas comemorações. 168
...reprovar, reter, repetir faz parte do mundo mais íntimo das crenças, dos valores, da cultura profissional. Da paz das consciências e dos nossos sonos. São os deuses que não perturbam, antes protegem nossos sonhos e matam tantos sonos de inovação pedagógica. 172
Um movimento inovador, que toca em valores coletivos, em culturas sociais e políticas, em imaginários coletivos perde força quando o isolamos nos muros e tensões da escola. 174
Não é fácil dormir em paz com nossa consciência humana e pedagógica quando reprovamos e deixamos na beira do percurso da escola e da vida centenas, milhares de crianças, adolescentes, tão parecidos a nós em sua cor, suas condições sociais, suas histórias de vida e seus sonhos de serem alguém. 176
Sem mexer nos valores, crenças, auto-imagens, na cultura profissional, não mudaremos a cultura política excludente e seletiva tão arraigada em nossa sociedade. 177
Que competências, valores significados, que usos da mente, do sentimento, da memória, da emoção... são “básicos” ou fazem parte da formação básica em cada momento histórico? Esta é uma questão que poderia nortear a procura do sentido de nosso saber-fazer, quando o vinculamos com a preparação para a vida. 183
Não captamos em cada disciplina que somos mais importantes do que o que ensinamos. 184
As classes trabalhadoras construíram uma cultura de classe. A cultura do trabalho. No processo de construção e legitimação da cultura do trabalho, de seu valor social, eles se construíram. A classe trabalhadora foi e é um dos sujeitos culturais que mais marcaram no século XX. 190
Os processos de conscientização política podem ser um mecanismo de recuperação de dimensões de nosso ofício que foram perdidas no tecnicismo marcante na nossa tradição escolar. 207
As grades são mais do que grades curriculares. Materializam hierarquias profissionais e laborais, legitimam e cristalizam concepções de educação e de docente. 211
A cultura escolar e profissional gira nessas polarizações materializadas nas grades curriculares. De tanto viver nelas nos degradamos e degradamos o conhecimento e a cultura. 211
Filosofia e sociologia, estética e ética, imaginação e memória, identidade, valores e cultura, múltiplas linguagens, desenvolvimento humano, para que? Esses saberes deram alguma vez dinheiro e emprego a alguém? Negamos às crianças, aos adolescentes e jovens e aos futuros adultos o direito humano a saber-se humanos. O direito à riqueza e à herança cultural acumulada e tão diversificada. 211
Sabemos que as ciências e as tecnologias se justificam na história pelo seu papel no desenvolvimento humano. 212
Seria ingenuidade histórica e pedagógica dizer que essas áreas (biologia, matemática, física e química) contribuíram menos do que as áreas ditas humanas e sociais. O problema não está na natureza ou no campo dos saberes, mas na visão ou no uso estreito ou totalizante que desses saberes, sempre humanos, a sociedade, a escola e os docentes possam fazer. 214
Todo o conhecimento é humano, poderá e deverá se útil, imprescindível. 215
Os conhecimentos escolares não podem ser polarizados entre os que são úteis, necessários para sobreviver para o trabalho e o concurso e aqueles que são formadores da cidadania crítica e da participação, da participação e do desenvolvimento humano. 215
A Lei 5692 de 71 fragmentou a categoria e a nova LDB de 96 não conseguiu recuperar a unidade perdida. As pressões corporativas preferiram manter o corpo do magistério quebrado, desfigurado. 218
O entulho tecnicista da Lei 5692/71 ainda está no pátio de muitas escolas e também de muitas secretarias, delegacias, superintendências, conselhos e ministérios. Foi incrustado na cabeça de muitos professores, técnicos e inspetores. 220
Muitos técnicos e supervisores, inspetores e gestores estão se questionando sobre seu papel diante de uma categoria profissional de docentes cada vez mais qualificada e autônoma. As transgressões dos mestres estão contagiando transgressões nos órgãos gestores e nos papéis especializados. 223
Em vez de falar tanto em autonomia da escola, o que é mais urgente é pensar em afirmar uma cultura pública. Construir coletivamente uma direção político-pedagógica para garantir os direitos públicos. Garantir a Educação Básica como direito público. Dar um caráter mais público ao Estado e seu estilo de gestão. 224
O caminho será o diálogo direto entre educadores, dialogar como coletivo sobre a prática, sobretudo as práticas que inventam para dar conta do que há de mais surpreendente na relação humana entre educadores e educandos. 224
Criar coletivamente uma nova cultura de gestão do público pode ser um dos produtos de propostas político-pedagógicas. Um produto que supõe superar concepções de inovação que vêem de fora para a escola. 225
Olhar a imagem reconstruída do magistério nas últimas décadas sem ver e captar a imagem do Paulo (Freire) Mestre seria um esquecimento injusto. 238
É impressionante a sensibilidade de Paulo Freire, a sua capacidade de ver como educador em cada gesto, rebelião ou manifestação, ver os sujeitos, suas grandes interrogações, sua procura, indagação de si, sua procura de humanidade. 241
Educar para Paulo não é apenas um encontro de gerações, uma relação entre seres humanos em tempos-ciclos de maturidade desigual. É mais. É captar e intervir no duplo movimento histórico de humanização e desumanização. 242
Tirar a infância da barbárie é um dever da sociedade e um direito de cada ser humano. A escola e nós temos esse dever. 245

OFÍCIO DE MESTRE - Imagens e auto-imagens - Miguel G. Arroyo. - Petrópolis, RJ: Vozes, 3ª ed. 2000.
"Somente podemos dar o que já é do outro". Jorge Luis Borges
"O que faz a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro". Mia Couto
"E de novo o ar que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões.
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor; uma liberdade no peito". Fernando Pessoa
APRESENTAÇÃO
Ø "... pois não é de todo infeliz aquele que pode contar a si mesmo a sua história". Maria Zambrano. P. 9
Ø aprendi que trabalhar com a educação é tratar de um dos ofícios mais perenes da formação da espécie humana. nossas prática se orientam por saberes e artes aprendidas desde o berço da história cultural e social. p. 9.
Ø Quando fui percebendo que a Escola Plural e tantas inovações que acontecem nas escolas e nas redes de educação recuperavam artes, saberes e fazeres mais perenes do ofício do magistério senti vontade de escrever. P. 9
Ø Além do mais, precisamos repor os mestres no lugar de destaque que lhes cabe. Fui percebendo que eles são mantidos em segundo plano. As escolas são mais destacadas nas políticas, na teoria e até nos cursos de formação do que os seus profissionais. Estes aparecem com um apêndice, um recurso preparado ou despreparado,(p.9) valorizado ou desvalorizado. Depois que se decide a construção da escola, os currículos e seus parâmetros, as políticas de qualidade ou de democratização da educação... pensam nos recursos humanos que darão conta da tarefa. Recursos é pouco. Ps. 9/10.
Ø Até no imaginário social das famílias, quando se pensa na educação da infância ou dos filhos se pensa na escola. P. 10.
Ø Até a história da educação estudada pelos professores(as) é a história da escola, dos sistemas de ensino não sua história profissional, dos seus saberes de ofício. Entretanto, os pedagogos, foram antes do que a pedagogia e do que as escolas. O magistério é anterior às instituições de ensino.
Houve no imaginário sobre a educação uma despersonalização que não acontece em outros campos sociais. O imaginário sobre o magistério tem muito a ver com a despersonalização da educação. A professora e o professor vistos apenas como apêndices.
Em uma visão mais humanista e personalizada, toda relação educativa é uma relação de pessoas, de gerações. A pedagogia tem no seu cerne a figura e o papel do pedagogo, de alguém que aprendeu o viver humano, seus saberes e valores, os significados da cultura, a falar, a dominar a fala, a razão, o juízo. Conseqüentemente, está capacitado a formar a infância, os "in-fans" não falantes, os aprendizes de humanos. Toda relação educativa será o encontro dos mestres do viver e do ser, com os iniciantes nas artes de viver e de ser gente. Os mestres no centro da pedagogia, não apêndices. P. 10.
Ø Recuperaremos o direito à Educação Básica para além de "toda criança na escola", se recuperarmos a centralidade das relações entre educadores e educando, entre infância e pedagogos. Colocando seu ofício de mestre no centro da reflexão teórica e das políticas educativas. Colocando os conteúdos e os métodos, a gestão e a escola como mediadores desta relação pessoal e social. como meios. Deixando de ver os professores(as) como recursos e recuperando sua condição de sujeitos da ação educativa junto com os educando. P. 10.
Ø Olhar os mestres é o melhor caminho para entender a escola e o movimento de renovação pedagógica. P. 12.
Ø ... os docentes vão construindo a escola possível, nem sempre a escola sonhada. P. 12
Ø Às vezes, diante da figura do professor(a) sinto-me como se estivesse diante de um velho e apagado retrato de família. Com o tempo perderam-se cores e apagaram-se detalhes e traços. A imagem ficou desfigurada, perdeu a viveza, o interesse. Mais um retrato a guardar na gaveta de nossos sonhos perdidos, para revê-lo em tempos de saudades. P. 13.
Ø O magistério é uma referência onde se cruzam muitas histórias de vidas tão diversas e tão próximas. Um espaço de múltiplas expressões. Usamos entre nós o termo categoria, magistério, a categoria do magistério, a categoria em greve, a categoria injustiçada. Somos um coletivo. Há uma imagem de coletivo na representação social e na nossa representação. P. 14.
Ø Somos a história de que participamos. A memória que carregamos. P. 14.
Ø ... o mestre que somos, o pedagogo-educador que aflora em nós, reflete o rosto, o percurso ou sem-percurso da infância que acompanhamos. Não esqueci que a infância tem sido nossa cúmplice ao longo da história da pedagogia e de nossa condição de pedagogos. P. 15.
Ø Chego a pensar que só reconstruiremos nossa imagem de pedagogos na medida em que nos reencontremos com a infância que nos dá sentido. Infância e adolescência que cada dia estão mais desafiadoras nas ruas e também nas escolas. Seu rosto desfigurado é tão parecido com o nosso rosto desfigurado. P. 15.
Ø Samuel Beckett: "Sim, em minha vida... houve três coisas: a impossibilidade de falar, a impossibilidade de calar e a solidão."
Conversas sobre o Ofício de Mestre
Ø "Não me arrependo do que fui outrora,
Porque ainda o sou". Fernando Pessoa.
Ø Passam os anos e continuamos tão iguais! P. 17.
Ø Não há como olhar-nos sem entender que o que procuramos afirmar no presente são traços de um passado que mudou menos do que imaginávamos. O reencontro com "Nossa memória" nos leva ao reencontro com uma história que pensávamos (ou desejávamos) não mais existir. P. 17.
Ø Guardamos em nós o mestre que tantos foram. Podemos modernizá-los, mas nunca deixamos de sê-lo. P. 17.
Os segredos e as artes de ofício
Ø O termo ofício remete a artífice, remete a um fazer qualificado, profissional. Os ofícios se referem a um coletivo de trabalhadores qualificados, os mestres de um ofício que só eles sabem fazer, que lhes pertence, porque aprenderam seus segredos, seus saberes e suas artes. Uma identidade respeitada, reconhecida socialmente, de traços bem definidos. Os mestres carregavam o orgulho de sua mestria. P. 18.
Ø A educação que acontece nas escolas tem, ainda, muito de artesanal. Seus mestres têm que ser artesãos, artífices, artistas para dar conta do magistério. P. 18.
Ø O conviver de gerações, o saber acompanhar e conduzir a infância em seus processos de socialização, formação e aprendizagem, a perícia dos mestres não são coisas do passado descartadas pela tecnologia, pelo livro didático, pela informática ou pela administração de qualidade total. A perícia dessas artes poderia ter sido substituída por técnicas, entretanto nem os tempos da visão mais tecnicista conseguiram apagar estas artes, nem os novos tempos das novas tecnologias, da TV, da informática aplicados à educação conseguirão prescindir da perícia dos mestres. Educar incorpora as marcas de um ofício e de uma arte, aprendida no diálogo de gerações. O magistério incorpora perícia e saberes aprendidos pela espécie humana ao longo de sua formação. P. 18.
Ø Conversar sobre o ofício de mestre tem ainda outra motivação: é entre nós e sobre nós que conversamos em tantos encontros, congressos e conferências, em tantas tentativas de construir a escola e de nos construirmos como profissionais. Por outro lado e a qualquer pretexto, se inventam encontros, mais da categoria do que oficiais. Encontros onde o olhar é sobre a prática, o fazer educativo, sobre os projetos de escola, sobre as áreas do conhecimento, sobre as condições de trabalho, salariais, de carreira, de estabilidade. Sobre nossa condição e identidade coletiva. Quanto mais nos aproximamos do cotidiano escolar mais nos convencemos de que ainda a escola gira em torno dos professores, de seu ofício, de sua qualificação e profissionalismo. São eles que a fazem e reinventam. P. 19.
Um ofício descartável?
Ø Não podemos confundir e substituir a gestão participativa pelo cerne da relação educativa. A mobilização e participação das comunidades e das famílias poderia ser equacionada nas dimensões socializadoras, educativas que sem dúvida têm. Poderia ser uma oportunidade para que os educandos e educadores percebessem as proximidades entre os espaços familiares, comunitários e escolares, entre os saberes do currículo e os saberes sociais. Poderia ser uma oportunidade para que a escola se abra à cultura, à memória coletiva e à dinâmica social. cientes, porém, de que avançar nas formas de participação da comunidade escolar e da sociedade não suprirá nunca o ofício dos mestres, assim como avançar na gestão participativa dos centros de saúde não poderá dispensar nunca o trabalho artesanal e profissional dos profissionais da saúde. P. 20.
Ø Não temos dúvidas que a garantia dos direitos sociais somente acontecerá na afirmação de uma cultura pública, no reconhecimento cultural, coletivo desses direitos, no comprometimento da sociedade. Sabemos que a educação enquanto direito é uma empreitada tão séria que não poderá ficar apenas por canta dos seus profissionais, mas também não aconteceria sem eles, sem sua perícia, seu trabalho qualificado. Seu planejamento e ação competentes são insubstituíveis. Seu ofício não é descartável. P. 21.
A especificidade do saber-fazer educativo
Ø Uso o termo "ofício de mestre" tentando aproximar-me destes processos que me parecem extremamente significativos para a construção social do magistério básico. Recuperando esse termo, quero destacar que está em jogo a defesa do seu antigo significado, que vê no pedagogo, no educador ou no mestre um homem, uma mulher que tem um ofício, que domina um saber específico. Ter um ofício significava orgulho, satisfação pessoal, afirmação e defesa de uma identidade individual e coletiva. De uma identidade do campo de sua ação. P. 21.
Ø Estamos em um momento de reafirmação da dimensão de trabalhador qualificado, senho de um saber de ofício, um mestre nas artes de ensinar e educar, insubstituível, resistindo às ameaças de sua descaracterização. Este novo momento pode significar a defesa de um certo "monopólio" dessa função social. Diante desse movimento nos perguntamos: que sentido ele tem? Reafirma uma visão tradicional da função de mestres, ou incorpora a defesa de dimensões e funções profissionais permanentemente ameaçadas? P. 22.
Ø As questões que têm estado em jogo nestas décadas são essas: a defesa de identidade dos profissionais da educação, de sua qualificação e profissionalismo e a defesa da especificidade do campo educativo. Ambas caminharam juntas ao longo da história.
Refletir sobre esse movimento é trazer à cena o próprio ofício de mestre, a construção social desse profissional e do campo educativo. Um processo histórico delicado que esteve na base da garantia do direito social à educação e à cultura. Que lança as bases onde se enraíza essa garantia: na configuração de campos sociais e dos papéis sociais que dele dêem conta. Sem essa base e esse subsolo os direitos ficam soltos, à mercê de mobilizações pontuais, de responsabilidades difusas.
O direito à educação nunca será garantido por um clube de amigos. Já temos amigos e amigas da cultura, de animais de estimação ameaçados, de crianças de rua, de órfãos e agora a mídia e os governos lançam a campanha Amigos da escola! Mais um capítulo de nossa longa história, de sua descaracterização. A educação escolar tratada como uma terra vadia, sem cercas, facilmente invadida por aventureiros ou por amigos. Mui amigos! Qualquer um entende, palpita sobre a escola, aceita ser(p.22) professor(a), secretário(a) ou gestor de educação. Paralelo a este processo tivemos a descaracterização dos seus profissionais ou a desprofissionalização dos mestres de escola. Qualquer um que domine um conhecimento e uma técnica, poderá ensiná-los como um biscate e um complemento a seus salários.
As artes de educar e o domínio da teoria pedagógica se tornaram desnecessários diante de um campo descaracterizado. A Lei número 5692 de 71 descaracterizou a escola e os currículos de formação. As licenciaturas desfiguraram seus mestres. Os currículos gradeados e disciplinares empobreceram o conhecimento, a escola e os professores. O peso central dado ao domínio dos conteúdos das áreas nas licenciaturas e o peso secundário dado ao domínio das artes educativas reflete essa mesma concepção e trato descaracterizado do ofício e do campo educativo que vem se alastrando por décadas. Reduzimos a escola a ensino e os mestres a ensinantes. O movimento de afirmação do campo educativo, de sua especificidade e do profissionalismo do trato estão no outro lado, vem na contramão dessa triste história. Tem sentido dialogar sobre o ofício de mestre. Ps. 22/23.
Ø Quando acompanho os vinte últimos anos de história do magistério, vejo mais do que lutas por salários e carreira, estabilidade e condições de trabalho. Vejo a defesa e afirmação de um ofício que foi vulgarizado e precisa ser recuperado sem arrependermos do que fomos outrora, porque ainda o somos. P. 23.
Mestres de ofício, não cata-ventos
Ø As políticas de formação e de currículo e, sobretudo, a imagem de professor(a) em que se justificam perderam essa referência ao passado, à memória, à história, como se ser professor(a) fosse um cata-vento que gira à mercê da última vontade política e da última demanda tecnológica. Cada nova ideologia, nova moda econômica ou política, pedagógica e acadêmica, cada novo governante, gestor ou tecnocrata até de agências de financiamento se julgam no direito de nos dizer o que não somos e o que devemos ser, de definir nosso perfil, de redefinir nosso papel social, nossos saberes e competências, redefinir o currículo e a instituição que nos formarão através de um simples decreto. P. 24.
Ø Temos uma história, fazemos parte de uma construção social, cultural, que tem sua história, que tem muito a ver com a história do trabalho, dos trabalhadores, de seus saberes e ofícios. Com a história do fazer-se da cultura operária. Não é esse o legado acumulado nos últimos vinte anos pelas lutas da categoria ao identificar-se como trabalhadores em educação? P. 25.
Um modo se ser
Ø "Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo...
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou...
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma..." Fernando Pessoa
Ø Lendo o livro Imagens do outro, me chamou a atenção uma pergunta que é posta logo na apresentação: "...não sou eu mesmo um outro para mim mesmo...?" Um outro que resultei de tudo e que me acompanha. Que somos e queremos deixar de ser. Não é fácil aceitar uma identidade tão socialmente determinada.
Ø Problematizar-nos a nós mesmos pode ser um bom começo, sobretudo se nos leva a desetar das imagens de professor que tanto amamos e odiamos. Que nos enclausuram, mais do que nos libertam. Porque somos professores. Somos professoras. Somos, não apenas exercemos a função docente. Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de maneira tão apropriada. Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. Os tempos de escola invadem todos os outros tempos. Levamos para casa as provas e os cadernos, o material didático e preparação das aulas. Carregamos angústias e sonhos da escola para casa e de casa para a escola. Não damos conta de separar esses tempos porque ser professoras e professores faz parte de nossa vida pessoal. É o outro em nós. P. 27.
Ø Assisti uma entrevista com uma atriz de teatro. Em debate a mesma questão nesse tipo de entrevista: se a personagem representada tinha a ver com a mulher-atriz, como separar a representação e a vida pessoal, como separar a personagem do humano de quem apresenta... Em nosso caso, como tirar a máscara de professora, de professor quando termina o espetáculo da docência. A máscara virou um modo de ser? Personalidade? São freqüentes depoimentos como estes: "quando terminam as aulas quero deixar na gaveta as vivências do dia, não consigo". "Quando vou chegando em casa tento esquecer as lembranças da escola, não dá". P. 28
O ambíguo sonho da profissionalização
Ø Volto à pergunta que nos persegue: quem somos? Dominando competências mudaremos a imagem? Um ponto de partida para responder estas perguntas poderia ser este: Somos a imagem que fazem de nosso papel social, não o que teimamos ser. Teríamos de conseguir que os outros acreditem no que somos. Um processo social complicado, lento, de desencontros entre o que somos para nós e o que somos para fora. Entre imagens e auto-imagens. É freqüente lamentar que não somos socialmente reconhecidos. Mas como se constrói o reconhecimento social de uma profissão? Repito, seria um bom ponto de partida: somos a imagem social que foi construída sobre o ofício de mestre, sobre as formas diversas de exercer esse ofício. Sabemos pouco sobre nossa história. Nem nos cursos normais, de licenciatura e pedagogia nos contaram quanto fomos e quanto não fomos. O que somos. P. 29.
Imagens tão diversas
Ø Ser professora ou professor é carregar uma imagem socialmente construída. Carregar o outro que resultou de tudo.
O desencontro entre imagens sociais e imagens pretendidas pela categoria e auto-imagens pretendidas por cada um cria uma tensão, um mal-estar que mantém sempre a pergunta: quem somos? P. 30.
Ø Em muitos encontros de licenciados docentes de 5ª a 8ª e do Ensino Médio aflora essa indefinição profissional e pessoal, originada nessa indefinição social. a indefinição foi um traço construído na história desse nível de ensino e permanece. Está condicionada à história do antigo ginásio e dos cursos médios sempre preparatórios, nunca referidos a um tempo-ciclo específico da formação da adolescência ou da juventude, nem referidos a saberes para terminalidades específicas, mas a saberes sempre intermediários, preparatórios para o nível superior. No nível superior, os docentes e seus saberes têm um estatuto social reconhecido, mas o Ensino Médio é visto apenas como inter-médio, intermediário, indefinido. Esse é o imaginário social que as licenciaturas não redefiniram, antes reforçaram com anuência dos cntros de formação e dos próprios profissionais teimosamente "profissionais" de suas áreas. Ficou o vácuo de um saber profissional capaz de dar conta da educação e da formação cognitiva, ética, cultural etc. da adolescência e da juventude. P. 31.
Ø O que somos como docentes e educadores depende do reconhecimento social dos tempos da vida humana que formamos. Do valor dado a esses tempos. Como pedagogos nascemos historicamente colados à sorte da infância, a um projeto de seu acompanhamento, condução e formação. Temos os tempos da vida humana como nossos cúmplices. Nos afirmamos profissionalmente no mesmo movimento em que essas temporalidades vão se definindo, social e culturalmente. É menos a sorte dos recortes dos conhecimentos das ciências e das técnicas, o que nos conforma, do que a sorte dos tempos-ciclos da formação humana. estes são nossos cúmplices identitários. P. 32.
A herança que carregamos
Ø A idéia de vocação, por exemplo, o componente vocacional a serviço dos outros e de ideiais, foi perdendo peso. Entretanto, essa visão ainda é forte na auto-imagem de muitos professores. Poderíamos pensar que são resquícios de uma visão religiosa que ainda perduram e que o avanço do profissionalismo irá apagando? Uma crença um tanto evolutiva e precipitada. A idéia de vocação pode estar incrustada na idéia de profissão. Até o Aurélio, antes de definir profissão como "atividade ou ocupação especializada", a define como "ato ou efeito de professar. Declaração pública de uma ciência, sentimento ou modo de ser habitual".
Por mais que tentemos apagar esse traço vocacional, de serviço de ideal, a figura de professor, aquele que professa uma arte, uma técnica ou ciência, um conhecimento, continuará colada à idéia de profecia, professar ou abraçar doutrinas, modos de vida, ideais, amor, dedicação. Professar como um modo de ser. Vocação, profissão nos situam em campos semânticos tão próximos das representações sociais em que foram configurados culturalmente. São difíceis de apagar no imaginário social e pessoal sobre o ser professor, educador, docente. É a imagem do outro que carregamos em nós. P. 33.
Ø Tentamos superar uma herança social, vocacional, historicamente colada a nosso ofício: a imagem do mestre divino, evangélico, salvador, tão repetida como imagem em discursos não tão distantes. Discursos esquecidos, talvez, mas traços culturais ainda tão presentes. O ofício de mestre faz parte de um imaginário onde se cruzam traços sociais afetivos, religiosos, culturais, ainda que secularizados. A identidade de trabalhadores e de profissionais não consegue apagar esses traços de uma imagem social, construída historicamente. Onde todos esses fios entrecruzam. Tudo isso sou. Resultei de tudo. P. 33.
Ø No convívio com professoras e professores percebo que há uma preocupação por qualificar-se, por dominar saberes, métodos, por adequar sua função social aos novos tempos, novos conhecimentos e novas tecnologias. Porém não é por aí que se esgotam as inquietações. Há algo mais de fundo em questão: o próprio sentido social de suas vidas, de seus esforços, de sua condição de mestres. Entender o papel que exercem, o peso social e cultural que carregam. Sua condição. Seu ofício. Seu ser professor, professora.
Essa procura de sentido passa por saber-se melhor, por entender melhor; que traços, que valores, que representações fazem parte desse construto social, dessa categoria social. saber tudo isso que somos.
Durante décadas a categoria vem-se autodescobrindo e afirmando como coletivo social. descobre que o trato que recebe, o salário que lhe é negado, as condições de trabalho não são produto deste ou daquele governo, nem sequer da cor e vontade política das administrações públicas. Que o trato está colado à imagem social que se repete com poucas alterações, que perdura como um modo de ser pesado. Os salários,(p.34) a carreira, as condições de trabalho estão coladas à sua condição de coletivo, referido a ser professor(a) de escola primária, elementar, básica. Essa condição define tudo. Define sobretudo limites socialmente intransponíveis, tão difíceis de serem alargados. Por que toda luta e reivindicação se confronta com esses limites? Porque eles vêm de longe e se reproduzem no imaginário social ao qual os administradores apelam para justificar salários, carreiras e condições de trabalho. Ps. 34/35.
Ø A imagem social de nosso ofício se impõe. Os governantes jogam com essa imagem social contra a categoria: "para professor(a) esse salário não está tão ruim!" Para ser, para ser, para o que somos. Como pesa essa imagem! Somos a imagem que nos legaram, socialmente construída e politicamente explorada. Nossa relação com o magistério será de amor e ódio. Pode ser outra?
O ofício que carregamos tem uma construção social, cultural e política que está amassada com materiais, com interesses que extrapolam a escola. São esses os traços que configuram esse coletivo, essa função de mestre de escola. P. 35.
Ø A estratégia pode ser reconhecer a herança recebida, seu peso, social e cultural, as relações e estruturas que lhe dão forma, as estruturas inclusive escolares que a reproduzem. Redefinindo estruturas, relações sociais e culturais, e alterando as condições, ir afirmando novos traços ou redefinindo perfis. Há formas possíveis de ser professora ou professor diferentes. Um processo lento que exige um trato pedagógico e político. Uma postura apenas modernizante, profissionalizante não dará conta desse processo. Pode esquecer a história e pode jogar fora como tradicionais dimensões permanentes do ofício. Poderia inclusive quebrar representações e auto-imagens construídas. Exatamente porque ser professor(a) é uma forma de ser, não temos direito a quebrar formas de ser que se entrecruzam com identidades sociais e pessoais. Essas mudanças exigem um trato cuidadoso. P. 35.
Ø Através dessa relação apaixonada de amor e ódio nos aprendemos e aprendemos formas diferentes, mais nossas de ser e de vivenciar o magistério. Nem tudo o que somos nos pertence. Somos o que resultamos de tudo. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. P. 36.
Um dever-ser?
Ø "Recorda-te de teu futuro e caminha até a tua infância". Jorge Larosa
"O monstro criança não é o pai do homem, é no meio do homem, o seu decurso, a sua deriva possível, ameaçadora". Jean F. Lyotard P. 37
Ø O imaginário social configurou o ofício de mestre com fortes traços morais, éticos. No terreno do dever. Há figuras sociais de quem se espera que façam bem, com eficiência. Há outras de quem se espera que sejam boas, que tenham os comportamentos devidos, que sejam mais do que competentes. O magistério básico foi colocado neste imaginário. Poderemos tentar reagir enfatizando profissionalismo e eficiência, qualidade e resultados. Que como mestres ensinamos a ler, escrever, contar que ensinamos nossa matéria competentemente. Sempre será exigido mais desse ofício. As tentativas de destruir essa imagem de mestre como um dever-ser ao menos de substituí-la por uma imagem profissional competente vem de todo lado, sobretudo dos coletivos técnicos, de equipes de agências de treinamento e de financiamento (por que essa coincidência?).
Seja bom e competente, professor!
Ø A defesa da competência técnica tem defensores de todas as cores e motivações. Diante dos crônicos problemas do fracasso escolar e diante das exigências de domínio(p.37) das habilidades básicas do Ensino Fundamental, o domínio de habilidades de leitura, escrita e contas urge cada vez mais preparar a professora e o professor de Educação Básica como técnico competente, que dê conta da lecto-escrita, das contas, das habilidades e competências básicas, ao menos. Temos de reconhecer que a competência aumentou e sem dúvida é urgente que ainda aumente mais, que as famílias, os educandos têm direito à aprendizagem dessas competências elementares, que em outros países já avançaram nessa direção mais do que nós. P. 38.
Ø O dia em que a professora e o professor forem competentes em ensinar, deixarão de ser amorosos? E se deixarem de ser amorosos se tornarão mais competentes? E as mães nas conversas nas portas das escolas à espera de seus filhos não dirão mais "a professora de meus filhos é muito boa", mas é muito competente. Como foram colados à imagem de educador e pedagogo, esses traços de amor, dedicação e bondade? Eles ocuparam o vazio deixado por traços de competência técnica? Estas questões não são coisa de academia, nem dos quadros técnicos das agências de financiamento e definição de políticas públicas, são questões que afetam de cheio a auto-imagem dos próprios mestres. P. 39.
Voltar à estação primeira, à infância
Ø A infância tem entre seus múltiplos direitos o de ser alfabetizada e o pedagogo tem suas múltiplas obrigações éticas a de ser competente nessas técnicas. Entretanto, esse traço não esgota a totalidade de traços sociais e culturais que foram configurando a infância e seus pedagogos. Há uma cumplicidade mútua entre ambos que marcou profundamente o ofício e a imagem de mestre-educador. P. 39.
Ø A figura do pedagogo vai se configurando no mesmo movimento da configuração da infância. A infância não é um simples conceito, é um preceito, um projeto de ser, vinculado a ideais de felicidade e emancipação, nos lembre Philippe Ariès. P. 39.
Ø Maturação, felicidade, emancipação, harmonia ou educação justa... tudo valores, ideais e projetos onde a infância e seu artífice, o pedagogo, se configuram. P. 39.
Ø É provocador que pensadores de outras áreas venham nos lembrar de nossas cumplicidades, não tanto com os conteúdos das disciplinas, mas com a infância. Como se estivessem a nos dizer: mestre, antes de tentar descobrir teu verdadeiro rosto pense no espelho que o reflete. Esse espelho, de longos tempos, é o caráter inconcluso do ser humano. Ser um possível e não um dado. Logo ser educador é ser mestre de obras do projeto arquitetado de sermos humanos. Essa é a imagem mais pesada e inquietante que provoca amor e ódio.
Jean F. Lyotard ainda acrescenta "Formar quer dizer que um mestre vem ajudar o espírito possível, à espera na infância, a realizar-se". Mas quem será capaz de dar conta dessa tarefa? O que se exigirá do mestre dessas artes de realizar o ser possível, à espera na infância? O pedagogo seria aquele que se desenvolveu, que aprendeu a realizar suas possibilidades, que se emancipou de sua condição infantil, e aprendeu a ajudar a realizar-se nele mesmo o ser humano possível que estava à espera na sua infância. Mas como a realização das possibilidades primárias não se esgota, o próprio adulto-mestre nunca estará acabado, nunca será um mestre pleno no sentido de dominar esse percurso. P. 41.
Ø Ser mestre, educador é um modo se ser e um dever-ser. Ser pedagogos de nós mesmos. Ter cuidados com nosso próprio percurso humano para assim podermos acompanhar o percurso das crianças, adolescentes e jovens. É uma conversa permanente com nós mesmos sobre a formação. "Uma autoformação fundadora?" se pergunta Lyotard. P. 42.
Essa formação é outra história
Ø Aprender a ser pedagogo, a reatar com a estação da infância que é a dos possíveis do ser humano exige domínio de teorias e, sobretudo, exige uma elaboração pedagógica que não pode ser confundida com a aprendizagem e o domínio de mais uma teoria. É antes um saber sobre o percurso pedagógico, formador, que vai tornando possíveis as possibilidades de sermos humanos. É aprender a ser aquela professora "boa", aquele professor "bom" que de alguma forma as mães nas conversas à porta da escola comentam. Elas captam esses traços porque são mães portadoras de um senso fino para o possível humano. Portadoras de paciência, valorização, diálogo, compreensão do percurso dos filhos. P. 43.
Ø O traço do dever-ser situa-se em outro referencial, não calculável, nem ponderável por resultados imediatos, mas por pacientes percursos. Esse aprendizado não se esgota em cursos de 100, 300 horas, porque é um perene recomeçar. Não cabe titulação, ou licenciamento, porque é percurso sempre novo. Os professores sabem desse caráter da docência: cada dia no convívio com crianças ou adolescentes é um outro dia. É voltar à infância, reencontrá-la nos educandos e em nós mesmos. É o que trona a educação contagiante e surpreendente como é a infância quando não é negada ou reprimida. "quando trabalho com crianças viro criança", dizia-me uma professora. a volta à estação primeira exige domínio de artes e saberes.
As dimensões do dever-ser não cabem num novo ou velho método. É uma postura humana, pedagógica, mais do que uma nova metodologia, nova didática ou nova estratégia de ensino. Mais do que uma nova competência teórica a ser treinada em conjuntos de cargas horárias de requalificação. A infância é um projeto de ser, um possível, não um dado. Tratar esse projeto como um dado, com técnicas fechadas predeterminadas em cada bimestre, medindo resultados, é abandonar o trato pedagógico. P. 44.
Ø Tornar o professor reflexivo, capaz de tematizar prática pode ser demasiado racional para captar processos tão surpreendentes como acompanhar a formação da infância e adolescência. Por que insistir tanto em cultivar a capacidade de reflexão,(p.45) tematização e não de sensibilizar-se, de ler, dialogar, escutar a infância e adolescência? Cultivar nos educadores(as) o hábito de refletir sobre o real é necessário, porém não secundarizar outros traços de uma autoformação formadora. Ps. 45/46.
A capacidade de escuta sempre renovada
Ø Educar educadores desse dever-ser é mais do que dominar técnicas, métodos e teorias, é manter-se numa escuta sempre renovada porque essa leitura nunca está acabada. Como uma matéria pendente, nunca aprovada. Um saber pedagógico para ser vivido mais do que transmitido. Aprendido num diálogo atento, em primeiro lugar, com os diversos aprendizados, com o próprio percurso de nossa formação, e com os percursos daqueles com os quais temos o privilégio de conviver mais de perto, filhos, amigos, alunos. P. 46.
Ø A capacidade de escuta sempre atenta e renovada da realidade onde se formam as crianças, adolescentes e jovens faz parte de nosso dever de ofício. A arte de diagnosticar, auscultar, perceber; é tão importante nos profissionais da saúde quanto a capacidade e o tino para regular e intervir. Todo ofício é uma arte reiventada que supõe sensibilidade, intuição, escuta, sintonia com a vida, com o humano.
Como voltar à infância não vivida?
Ø Aprendi com Paulo Freire que esse aprendizado tem de se alimentar também de um olhar atento, indignado perante os brutais processos de desumanização a que são submetidos tantas mulheres e homens perto de nós, tantas crianças, adolescentes, jovens e adultos com quem convivemos como educadores. A indignação diante das condições em que reproduzem suas vidas, na moradia, no trabalho, na rua e até nas escolas pode reeducar nossa sensibilidade para com os difíceis percursos a que são submetidos, os limites impostos a sua humanização. P. 49.
Ø Paulo parece sugerir que nós formaremos educadores num duplo olhar, de um lado olhar para as manifestações múltiplas de humanização, de outro para o reconhecimento da desumanização como viabilidade e realidade histórica. P. 48.
Ø Muitas vezes de volta das escolas dos morros, das vilas, voltando, ontem, da Baixada Fluminense, me perguntava como as professoras e professores conseguem continuar acreditando na educação como humanização no meio de tanta desumanização? Será, talvez e sobretudo, a partir dessa cotidiana constatação que continuam se perguntando sobre a outra viabilidade - a da humanização deles e delas e dos educandos? O ofício de mestre, um dever-ser incômodo. P. 49.
A HUMANA DOCÊNCIA
Ø "E toda humana docência
para inventar-se um ofício
ou morre sem exercício
ou se perde na experiência..." Cecília Meireles P. 50.
Docentes-educadores, uma relação tensa
Ø Nesses desencontros, nos desencontramos. Em nosso papel social e cultural se desencontram imagens não coincidentes, que foram perfilando um rosto desfigurado. Esse rosto desfigurado, indefinido de mestres e de nosso fazer social condiciona políticas de formação, currículos de formação e as instituições formadoras. Tem condicionado as teorias pedagógicas e nosso pensamento pedagógico, tão distante da teoria educativa e tão próximo do didatismo, das metodologias de ensino e dos saberes escolares a serem ensinados. P. 51.
Ensinar a aprender a sermos humanos
Ø Pela própria experiência humana, pelo convívio com filhos(as), netos(as), na família, pela proximidade com a infância nas salas de aula sabemos que ninguém nasce feito. Nos fazemos, nos tornamos gente. - "Virou gente"! - falamos com orgulho de um filho, crescido e criado. Não nascemos humanos, nos fazemos. Aprendemos a ser. Todos passamos por longos processos de aprendizagem humana. Se preferimos, toda criança nasce humana, mas isso não basta: temos que aprender a sê-lo. Podemos acertar ou fracassar. Nessa aprendizagem também há sucesso e fracasso. P. 53.
Ø O ofício de mestre, de pedagogo vai encontrando seu lugar social na constatação de que somente aprendemos a ser humanos em uma trama complexa de relacionamentos com outros seres humanos. Esse aprendizado só acontece em uma matriz social, cultural, no convívio com determinações simbólicas, rituais, celebrações, gestos. No aprendizado da cultura. Daí que a escola é um processo programado de ensino-aprendizagem, mas não apenas porque cada mestre esperado na sala de aula chegará para passar matéria, mas porque é um tempo-espaço programado do encontro de gerações. De um lado, adultos que vêm se fazendo humanos, aprendendo essa difícil arte, de outro lado, as jovens que querem aprender a ser, a imitar os semelhantes. Receber seus aprendizados. Os aprendizados e as ferramentas da cultura. P. 54.
Ø Nascemos ignorantes de muito mais: das artes, saberes e significados da cultura, acumulados sobre como ser e constituirmos humanos. São os processos de ensinar-aprender mais complexos, e mais esquecidos nos currículos, na organização dos tempos e espaços escolares, na formação de professores(as). aprendemos disciplinas sobre que conhecimentos da natureza e da sociedade ensinar e com que metodologias, porém não entra nos currículos de formação como ensinar-aprender a sermos humanos. Faltan-nos a matriz pedagógica fundante. Nosso perfil e saber de ofício fica truncado. E mais, descuidamos uma das curiosidades mais próprias de nossa condição humana, a curiosidade por aprender a ser, por entender os significados, por apropriar-nos da cultura. Nesses complexos saberes nascemos ignorantes. P. 55.
Ø Chegamos à sensação do sem-sentido da nossa função social e da função social da escola. Perde sentido a expressão que mais tem definido a função nossa e da escola: ser espaço de ensino-aprendizagem, sermos docentes, mestres das artes de ensinar a quem quer aprender. p. 56.
Roubaram sua vontade de saber?
Ø Chegamos a uma questão que temos debatido bastante em reuniões e congressos: o desinteresse dos alunos por nossa docência não questiona nossa docência? Não nos adverte que deixou de ser humana a docência? É preocupante que a infância, adolescência e a juventude não tenha interesse por nossas lições, mas pode acontecer que tenham interesse por outras lições, por exemplo como aprender os valores em uma sociedade sem valores e leis que regulam o relacionamento entre gêneros, classes, raças, idades. Pode ser que queiram saber como vão se inserir no trabalho, nas artes, na cidadania, como funciona a produção... como ser gente. Será que a infância, adolescência, juventude não se colocam essas questões? Ou nós não incorporamos essas questões como conteúdos de nossa docência? Seu "desinteresse" não questiona radicalmente nossa "desumana" docência?
Esse sentimento bastante generalizado no magistério, de que os alunos não querem nada, é socialmente preocupante porque se é verdade que as novas gerações brasileiras não querem aprender é porque chegaram a um grau de desumanização tal que a curiosidade, a vontade de aprender a ser, de experimentar a vida, de saborear a(p.56) existência humana, de ser humanos está sendo quebrada já na infância. A infância, adolescência e juventude populares estão submetidas a condição de existência tão desumanas que nem vontade têm de aprender as artes de ser humanas? Será que é essa radicalidade que as professoras e os professores percebem no convívio diário com as novas gerações, sobretudo com a infância popular que freqüenta a escola pública? Pode ser que, como educadores que têm o raro privilégio e peso de conviver com a infância excluída, percebem que estamos chegando aos limites da barbárie, à negação do que está na base de todo processo civilizatório, a vontade do ser humano, de aprender a ser mais humanos, de aprender o legado civilizatório e os significados da cultura.
Nas fronteiras da desumanização
Ø É inadiável criarmos culturas, lógicas, estruturas escolares e profissionais que dêem conta de processos de ensinar-aprender menos desumanos. A escola sozinha não reverte processos de desumanização da infância. Ao menos como espaço de igualdade poderá não contribuir para legitimá-los e reforçá-los. Quando buscamos outras lógicas, outras estruturas, os ciclos de formação, por exemplo, buscamos ao menos tornar o tempo de escola mais humano. Esta tarefa é possível, está em nossas mãos em grande parte. Podemos colocar-nos como questão nuclear que ordenamento escolar, que organização dos tempos e espaços do nosso trabalho de trabalhadores em educação darão conta de uma escola que seja um centro do ensino-aprendizagem digno. Assumir nosso ofício de mestre do ensino-aprendizagem dessas artes. Podemos construir uma escola menos desumana para nós e para os educandos. P. 61.
A Escola e nossa docência podem ser mais humanas
Ø A escola e nossa prática docente não tem que reproduzir necessariamente a sociedade injusta e discriminatória que aí está, nem para os trabalhadores em educação nem para os filhos e as filhas do povo. Esta tarefa é nossa, depende de nossas opções profissionais. Jogar a responsabilidade toda para o capitalismo, o neoliberalismo... é muito cômodo para nós. Estaremos fugindo da responsabilidade que nos toca. Quanto mais conheço as esolas, mais percebo que muitos profissionais estão indo além. Não reproduzem, no tempo de escola, a desumanização de outros tempos, das estruturas sociais. Muitos professores(as) se perguntam que é possível fazer na escola em termos de recuperar a humanidade que tão cedo lhes é roubada e negada. Nos tornamos humanos na medida em que as condições materiais em que vivemos e as relações que estabelecemos com outros seres são humanas.será essa a matriz pedagógica a recuperar? P. 64.
Ø Como é bonito chegar em uma escola onde as crianças e adolescentes convivem, trabalham em grupos. Em interações múltiplas, dialogam, produzem, inventam em coletivos. Cada dia temos mais escolas dinâmicas, flexíveis. Espaços abertos reinventados. P. 65.
Ø Lembro-me de um professor de biologia que experimentava como tantos e tantas o desinteresse dos adolescentes para com sua matéria. Perguntei como saía dessa. "Quando percebo que o desinteresse dos alunos chega ao limite, me disse, apago o quadro, fecho o livro, me sento sobre a mesa e começo a falar de minha vida, quando era adolescente, jovem, de minha relação com os filhos, adolescentes... O silêncio e a atenção voltam, eles se abrem e falam de sua adolescência, sua música, suas dúvidas e curiosidades. Dialogamos um tempo juntos sobre sua curiosidade e suas questões. Descobri que os adolescentes e jovens têm muita vontade de saber sobre a vida (não é essa minha matéria?) mas sobretudo muita vontade de saber-se e de saber sobre(p.66) mim, minhas inquietações, meus tempos de adolescência e juventude. Esperam que revele meu percurso humano.
Dialogamos solto. Um professor profundamente humano. Aprendi, aprendemos que educar é revelar saberes, significados, mas antes de mais nada revelar-nos como docentes educadores em nossa condição humana. é nosso ofício. É nossa humana docência. Ps. 66/67.
Conteúdos da humana docência
Ø "Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da existência humana". Brecht
Defesa dos conteúdos. Defesa de nós mesmos
Ø Uma das perguntas que logo se colocam os professores e as professoras é: e os conteúdos? Desapareceram? Não têm mais importância? No fundo, a pergunta se volta para o próprio ofício: e a minha identidade de docente, de professor(a) como fica? Interrogar-nos pelos conteúdos de nossa docência é interrogar-nos por nossa função, por nós mesmo. O medo de perder os conteúdos é o medo de perder o sentido do nosso saber-fazer. Na ousadia pedagógica de repensar os conteúdos de nossa docência poderá estar o encontro de um novo sentido para nosso saber-fazer. P. 70.
Docência aberta a outros conteúdos
Ø Savater nos lembra que essas habilidades ou conteúdos fechados, uma vez dominados, perdem interesse em si mesmos ainda que continuem com sua validade instrumental. Essas habilidades fechadas se esgotam ema vez aprendidas. Não tem sentido que uma criança ou adolescente que dominou esses saberes fechados os repita. Sabemos como é fastidioso repetir deveres de casa e mais ainda repetir o ano. Aprendeu está aprendido. Os professores percebem essa característica dos conteúdos escolares fechados. Os alunos repetentes perdem interesse pelas matérias que repetem que foram aprendidas no ano anterior, e até os alunos mais rápidos na aprendizagem perdem interesse em acompanhar os mais lentos da turma. a saída tem sido classes homogêneas por níveis de aprendizagem como precondição para manter o interesse. A natureza fechada desses conteúdos os torna interessantes apenas enquanto são aprendidos, logo se tornam desinteressantes. Daí a dificuldade que temos de manter o interesse da infância, adolescência ou juventude diante de saberes fechados. Não adianta tentar inventar didáticas, mais atrações, quando os alunos perderam o interesse por saberes fechados. É a natureza do saber que torna curta a margem de interesses tanto para o aprendiz quanto para os mestres. P. 73.
Ø Ensinar orações subordinadas diretas ou indiretas, acento átono ou tônico, ou cálculo matemático, vertebrados ou invertebrados no ensino fundamental é tão igual e tão fechado que não há o que pesquisar.
Temos de reconhecer que são esses saberes fechados que ocupam lamentavelmente a maior parte do tempo e das energias dos docentes da escola elementar. Elementarizamos tanto as competências básicas que aprisionamos nessa estreiteza os docentes da escola elementar. A palavra "grade curricular" é apropriadíssima. Quem está atrás das grades tem pouco a pesquisar e refletir a não ser como delas sair. P. 74.
Ø Percebo que o reencontro com o sentido da docência se dá na medida em que vamos descobrindo que esses saberes escolares e conteúdos fechados se são imprescindíveis ao aprendizado humano, não o esgotam. Há capacidades "abertas", que são componentes de nossa docência e do direito à Educação Básica. Aprender por exemplo o convívio social, a ética, a cultura, as identidades, os valores da cidade, do trabalho, da cidadania, as relações sociais de produção, os direitos, o caráter, as condutas, a integridade moral, a consciência política, os papéis sociais, os conceitos e preconceitos, o destino humano, as relações entre os seres humanos, e entre os iguais e os diversos, o universo simbólico, a interação simbólica com os outros, nossa condição espacial e temporal, nossa memória coletiva e herança cultural, o cultivo do raciocínio, o aprender a aprender, aprender a sentir, a ser... Esses conteúdos sempre fizeram parte da humana docência, da pesquisa, da curiosidade, da problematização. Nunca foram fechados em grades, sem se prestam a ser disciplinados em disciplinas. P. 75.
Ø Paulo Freire insistiu na dimensão humanizadora ou desumanizadora de toda relação pedagógica. O movimento de professores mostrou que toda prática educativa, docente, está orientada por um projeto de sociedade e de ser humano. A sociologia do currículo e do conhecimento nos mostrou que não há conteúdo escolar neutro. Na atualidade é difícil manter-se no limbo pedagógico da neutralidade da docência e dos conteúdos. P. 81.
Intranqüilidades nos quintais do conhecimento
Ø "A escola não deve converter-se em uma
incubadora de pequenos monstros avida-
mente instruídos".
"A cultura é um privilégio. A escola é um
privilégio. E não queremos que seja assim.
Todos os jovens deveriam ser iguais peran-
te a cultura..." Gramsci
Ø As reformas dos currículos, dos livros de textos, do material didático são mais do que reformas de conteúdo, elas reafirmam ou questionam e até orientam auto-imagens de docências. Nós docentes somos o que ensinamos, nos representamos como profissionais dos sabres e das competências que os currículos, os livros e o material didático nos pautam como prática de nossa docência. Sobretudo em nossa tradição pedagógica tão conteudista e tão centrada na imagem de professor licenciado em áreas recortadas dos saberes escolares, identificamos nossa docência com nossa matéria, nosso lote. Qualquer mudança ou afirmação dos conteúdos e de seu ordenamento nos afeta como profissionais. P. 84.
Ø Para que a Escola Básica não se converta em uma incubadora de pequenos monstros avidamente instruídos, teremos que nos colocar com radicalidade em como reorganizar a escola e seus conteúdos, que cultura docente construir, que concepções de propriedade e de conhecimento superar. Que docente dará conta dessa tarefa? Será necessário renunciar aos títulos de propriedade ou apenas modernizar nossa plantação? P. 93.
Ø Precisamos, com urgência, de outra concepção do conhecimento devido a infância, adolescência e juventude para sua formação como sujeitos humanos. Gramsci já apontava o caminho: que todos os jovens sejam iguais perante a cultura. A cultura acumulada e aprendida não cabe em quintais. É uma herança que incorpora uma concepção mais aberta do direito à Educação Básica do que a moderna teoria do conhecimento e da ciência.
É urgente ainda definir nossa identidade: quem somos nós? Educadores de tempos-ciclos da vida? Docentes de saberes e da cultura? Ou continuamos apegados `velha identidade de docentes proprietários de lotes ainda que modernizados? Na história das últimas décadas os próprios professores vêm se fazendo estas perguntas. Sinal de que se tranqüilidades não são tranqüilas nos quintais da docência. P. 93.
PARÂMETROS E AUSÊNCIAS
Um profissional único de educação fundamental?
Ø Educar para a cidadania, para a participação social e política, desenvolver atitudes de solidariedade, cooperação, diálogo e respeito ao outro, como estimular hábitos saudáveis com o meio ambiente e o corpo, são horizontes propostos para todos os professores e as professoras de Educação Fundamental. É possível que muitos docentes ao lerem esses objetivos dos Parâmetros pensem para si mesmos que "não têm muita novidade" que "já sabíamos que temos de dar conta da formação dos educandos". Nos discursos de formatura nos falaram que em nossas mãos está a formação do futuro do Brasil e juramos ser mais do que transmissores de conteúdos, juramos sermos educadores. De fato no discurso não há novidade, nem na auto-imagem difusa que todo docente carrega. P. 97.
Ø Outros objetivos propostos como o trato das diversidades e diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, etnia e outras características sociais e individuais, ou objetivos como o desenvolvimento das capacidade afetiva, física, cognitiva, ética, estética, ou das diferentes linguagens - verbal, musical, matemática, plástica e corporal... temos de reconhecer que em sua maioria são dimensões do desenvolvimento e da formação dos educandos não incorporadas na auto-imagem de professor formado na lógica da Lei no. 5692 dos anos 70.
Os Parâmetros nos propõem incorporá-los como nosso ofício de profissionais da Educação Fundamental. Como? Deixando que esses objetivos aconteçam de maneira um tanto fluida? Não será suficiente. Formar essas dimensões do ser humano exigirá um saber e um trato profissional. Exigirá um perfil de docente mais alargado do que o típico alfabetizador, regente de turma ou de matéria. P. 98.
Afinal, quem sou eu, um Super-herói?
Ø Os avanços não acontecem linearmente, sabemos. Estamos diante de um profissional do qual é exigido ver a infância, adolescência e juventude, seus alunos como sujeitos de direitos, vendo-se ele mesmo como profissional de direito, o direito à vivência digna e formadora dos tempos de escola, como tempos humanos. Mas ao mesmo tempo ainda é exigido desse profissional que não se esqueça que um dia, às vezes mais cedo do que deveria, essa criancinha da 1ª série terá de enfrentar, ou já enfrenta, um trabalho competitivo, seletivo. Cada dia mais competitivo numa sociedade onde nem sequer haverá trabalho ou apenas haverá trabalho para os bem formados e bem comportados, os excelentes. Os poucos. Que perfil de profissional dará conta de experiências tão desencontradas? P. 101.
Saídas? Credencialismos democrático - cidadania competente
Ø Uma solução ideal e tranqüilizadora: encarar a preparação para o trabalho como a expressão máxima da cidadania de todos. A palavra cidadania ficou tão gasta que perdeu seu sentido político-progressista. Cidadania é saber ler para sobreviver, saber ler para pegar o ônibus ou para reclamar no Procon pela geladeira vendida com defeito. Cidadania é saber informática para navegar na Internet. Cidadania é dominar asaberes úteis, aqueles mesmos das grades curriculares, das disciplinas, das provas escolares e dos concursos. Ouvi surpreso uma entrevista de um proprietário de um colégio especializado em preparar para a cidadania, mas não esqueceu de acrescentar, competente. Cidadania competente, a nova síntese estre duas visões que se confrontavam em décadas recentes. A terceira via na pedagogia. Ficamos no mesmo lugar, mais pragmáticos com novo discurso e com a auto-imagem progressista. O pragmatismo político tão na moda nos governos dos países emergentes. Salvamos nossa auto-estima. Conseguimos continuar com o mesmo perfil de professor, mas com um visual novo, com cores democráticas. O democratismo credncialista, tão anestesiante. Viva a escola e o mestre da 3ª via! P. 102
RECUPERAR A HUMANIDADE ROUBADA
Ø Escrever a história da educação brasileira, latino-americana ou da educação popular sem lembrar de Paulo seria uma injusta lacuna. Olhar a imagem reconstruída do magistério nas última décadas sem ver e captar a imagem do Paulo Mestre seria um injusto esquecimento. P. 238.
Sensibilidades tão próximas
Ø Uma das sintonias é ter aprendido a olhar a realidade nossa e dos educandos com um outro olhar. Destacando as condições de vida, trabalho, de família, de emprego e sobrevivência. Paulo partia desse foco. A categoria também aprendeu a olhar-se nesse foco existencial, como gente, sobrevivendo, produzindo sua existência. Aprendeu a ver os educandos também como gente na cotidianeidade dura em que reproduzem sua existência oprimida e excluída. P. 238.
Ø A repetida vinculação entre escolarização-progresso faz parte de um discurso repetitivo, cansativo, de uma ideologia que usa a escola como o caminho certa para o futuro. "Educação, garantia de futuro, quem estuda vai em frente". Uma ideologia que as propagandas de colégios "de qualidade" exploram, que as elites sempre alardearam para justificar sua riqueza, seus bens e seu prestígio e poder frente às massas pobres desempregadas.
O que não dá para entender é que nós, professores e professoras de Educação Básica pública e privada, pensemos dessa maneira, tenhamos introjetado essa ideologia., esse mito da escola abrindo as portas do futuro, do progresso quando tantos e tantas de nossa categoria, sobretudo entre os professores(as) de Educação Básica, tão pouco progrediram com tantos estudos. Quando profissionais formados temos de fazer greve cada ano para aumentar uns trocados em nossos minguados salários ou apenas para apanhar nas avenidas. Com que cara vamos dizer aos filhos e filhas dos 80(p.239) milhões de pobres e 30 milhões que vivem na miséria que se estudarem nossas noções de ciências e de cálculo, e dominarem o beabá, se forem alfabetizados o futuro será diferente? Como mínimo é uma questão de ética profissional prestar-nos a reproduzir esses mitos, a enganar com essas mentiras que não funcionaram em nossas vidas. Ps. 239/240.
Educar é humanizar
Ø Paulo nos coloca o saber sobre nós como a questão, como o problema pedagógico, nós mesmos, nossa condição humana como problema. "O problema de sua humanização, apesar de sempre haver sido o seu problema central, assume, hoje, caráter de preocupação iniludível"(p.29). Lutar pela humanização, fazer-nos humanos é a grande tarefa da humanidade. Aí Paulo situa toda tarefa pedagógica: contribuir com a humanização. Este o sentido do fazer educativo. Este o sentido de tantas renúncias feitas pela infância, adolescência, juventude popular para permanecer na escola, para dividir tempos de escola e de trabalho. Este é o sentido de esperar melhorar de vida, de sair dessa vida aperreada, indigna de gente. A escola como um tempo mais humano, humanizador, esperança de uma vida menos inumana. P. 240.
A desumanização como realidade histórica
Ø O movimento histórico de humanização e desumanização acompanha os seres humanos desde a infância. A história da infância e a realidade concreta das crianças que freqüentam a escola pública estão aí mostrando-nos esse movimento de humanização e desumanização. A história da pedagogia está aí para mostrar que ela não pode ficar alheia a esse duplo movimento. A tarefa da educação e dos educadores seria captar esse tenso movimento. Faz parte de nosso ofício entender os processos históricos de desenvolvimento e formação humana, os processos civilizatórios e culturais, o progresso do conhecimento acumulado, mas também faz parte de nosso ofício entender que esse movimento não é linear, acumulativo (saber acumulado, como tanto falamos), é um processo truncado pelos brutais mecanismos de desumanização. P. 241.
Situar o olhar no desenvolvimento humano
Ø A finalidade da Educação básica é o pleno desenvolvimento dos educandos, entretanto ela não é linear, para milhares dos alunos ele é truncado. O que torna nosso saber-fazer bem mais complexo do que prevêem, por vezes, as teorias do desenvolvimento e da aprendizagem. Como ofício temos de saber mais sobre aprendizagem. Como se processa mas também como se quebra o desenvolvimento mental, ética, emocional, identitário... da infância submetida à barbárie e à exclusão. Como a infância e adolescência podem se desenvolver nessa barbárie? Que processos mentais, éticos, identitários são possíveis na infância roubada?
A relação entre educação, barbárie, desumanização e dagradação da infância e adolescência cabem, e como, em uma proposta séria de escola pública. Podem encontrar um lugar em nossa sensibilidade de mestres. Fazer da prática educativa, dos tempos e espaços escolares um momento pedagógico de humanização. Ao menos de recuperação da humanidade que lhes é roubada em outros tempos e espaços, daria outro sentido a nossa ação e pensamento educativo. P. 243.








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