Ø Honrar um pensador não é elogiá-lo, nem mesmo interpretá-lo, mas discutir sua obra, mantendo-o, dessa forma, vivo, e demonstrando, em ato, que ele desafia o tempo e mantém sua relevância. (Cornelius Castoriadis)
A verdadeira filosofia é raprender a ver o mundo. (Merleau-Ponty). P. s/n
O que é ideologia?
1. Senso comum e bom senso
Ø Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradição, herdado dos antepassados e ao qual acrescentamos os resultados da experiência vivida na coletividade a que pertencemos. Trata-se de um conjunto de idéias que nos permite interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores que nos ajuda a avaliar, julgar e portanto agir. P. 35.
Ø ... senso comum não é refletido e se encontra misturado a crenças e preconceitos. É um conhecimento ingênuo (não-crítico), fragmentário (porque difuso, assistemático e muitas vezes sujeito a incoerências) e conservador (resiste à mudanças). P. 35.
Ø Em outras palavras, o senso comum precisa ser transformado em bom senso, este entendimento como a elaboração coerente do saber e como erxplicitação das intenções conscientes dos indivíduos livres. Segundo o filósofo Gramsci, o bom senso é "o núcleo sadio do senso comum".
Qualquer pessoa, não sendo vítima de doutrinação e dominação, e se for estimulada na capacidade de compreender e criticar, torna-se capaz de juízos sábios porque vitais, isto é, orientados para sua humanização. P. 35.
Ø Qualquer homem, se não foi ferido em sua liberdade e dignidade, e se teve ocasião de desenvolver a habilidade crítica, será capaz de autoconsciência, de elaborar criticamente o próprio pensamento e de analisar adequadamente a situação em que vive. É nesse estádio que o bom senso se aproxima da filosofia, da filosofia da vida.
2. Ideologia: sentido amplo
Ø Há vários sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias, concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. Quando perguntamos qual é a ideologia de determinado pensador, estamos nos referindo à doutrina, ao corpo sistemático de idéias e ao seu posicionamento interpretativo diante de certos fatos. É nesse sentido que falamos em ideologia liberal ou ideologia marxista. Ainda podemos nos referir à ideologia enquanto teoria, no sentido de organização sistemática dos conhecimentos destinados a orientar a ação efetiva. Existe portanto a ideologia de uma escola, que orienta a prática pedgógica: a ideologia religiosa, que dá regras de conduta aos fiéis; a ideologia de um partido político, que estabelece determinada concepção de poder e fornece diretrizes de ação a seus filiados. Já ouvimos a expressão "atestado ideológico", que é a declaração exigida sobre a filiação partidária de alguém. P. 36.
3. Ideologia: sentido restrito
Ø O conceito de ideologia tem outros sentidos mais específicos, elaborados por autores como Destutt de Tracy, Comte, Durkheim, Weber, Manheim.
Mas é sobretudo com Marx que a explicitação do conceito enriqueceu o debate em torno do assunto e de sua aplicação. Para ele, diante da tentativa humana de explicar a realidade e dar regras de ação, é preciso considerar também as formas de conhecimento ilusório que levam ao mascaramento marxista, a ideologia adquire um sentido negativo, como instrumento de dominação.
Isso significa que a ideologia tem influência marcante nos jogos do poder e na manutenção dos privilégios que plasmam a maneira de pensar e de agir dos indivíduos na sociedade. A ideologia seria de tal forma insidiosa que até aqueles em nome de quem ela é exercida não lhe perceberiam o caráter ilusório. P. 36
Conceituação de ideologia
Ø Vejamos a definição dada pela professora Marilena Chaui: "a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. pelo contrário, a função da ideologia é a de apagasr as diferenças, como as de classes, e de forncecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado".
Observando então que a ideologia é apresentada como tendo fundamentalmente as seguintes características:
. constitui um corpo sistemático de representações que nos "ensinam" a pensar e de normas que nos "ensinam" a agir;
. tem como função assegurar determinada relação dos homens entre si e com suas condições de existência, adaptando os indivíduos às tarefas prefixadas pela sociedade;
para tanto, as diferenças de classe e os conflitos sociais são camuflados, ora com a descrição da "sociedade una e harmônica", ora com a justificação das diferenças existentes;
. com isso é assegurada a coesão dos homens e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da "vontade de Deus" ou do "dever moral" ou simplesmente como decorrentes da "ordem natural das coisas";
. em última instância, tem a função de manter a dominação de uma classe sobre outra. P. 37.
Ø Portanto, a ideologia se caracteriza pela naturalização, na medida em que são consideradas naturais as situações que na verdade são produtos da ação humana e que portanto são históricos e não naturais: por exemplo, dizer que a divisão da sociedade em ricos e pobres faz parte da natureza; ou que é natural que uns mandem e outros obedeçam. P. 37.
Ø Ao afirmarmos que "o salários paga o trabalho do operário", estamos diante de uma lacuna, pois, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia e, portanto, o artifício do qual deriva a exploração do trabalhador, que produz a sua alienação e oculta a diferença de condição de vida das pessoas na comunidade.
A afirmação "a educação é um direito de todos" é verdadeira e até um dever, já que há obrigatoriedade legal de se completar o curso primário. Mas essa afirmação se torna abstrata e lacunar, ao apresentar como universal um valor que beneficia apenas uma classe.
Isso confirmado pelas estatísticas que mostram a evasão e o baixo índice de freqüência escolar por parte das classes desfavorecidas. Mesmo que sejam dadas "explicações", em função das dificuldades de adaptação, do mercado de trabalho e até do desinteresse ou preguiça dos alunos, o que se oculta é que na sociedade de classes há uma contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que usufruem essas riquezas, excluindo delas os produtores.
Assim, a educação é um dos bens a serem usufruídos pelos componentes da classe dominante. Portanto, a educação aparece como um direito de todos, mas, analisando a gênese da produção e usufruto dos bens, descobre-se que de fato a educação está resttrita a uma classe. P. 38.
4. O discurso não-ideológico
Ø A ação e o pensamento humanos nunca se acham totalmente determinados pela ideologia. Sempre haverá espaços de crítica e fendas que possibilitem a elaboração do discurso contra-ideológico.
Não é simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, pois a ideologia penetra em setores insuspeitáveis: na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa, nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade entre o pensar e o agir, determinando a repetição de fórmulas prontas e acabadas. Por outro lado, é exatamente nesses mesmos espaços em que é veiculada a ideologia que se inicia o processo de conscientização. P. 39.
CAPÍTULO 9 - Instrumentos do Conhecimento
2. Inferência e argumento
Ø Chamamos inferência ao processo pelo qual chegamos a uma conclusão. Trata-se de um processo explicável pela psicologia, com o auxílio da qual constatamos que o conhecimento é constituído por elementos racionais, embora existam também os fatores emocionais e intuitivos. P. 79.
Ø A proposição é a representação lógica do juízo. Juízo é o ato pelo qual a inteligência afirma ou nega a identidade representativa de dois conceitos.
Na proposição "O homem é livre", há dois conceitos (homem e livre) em que um é afirmado de outro. Na proposição "O homem não é mineral", o conceito mineral é negado do conceito homem... Na lógicaos conceitos são chamados de termos. Portanto, nos exemplos citados, os termos são homem, livre e mineral.
A argumentação é a representação lógica do raciocínio. É um tipo de operação discursiva do pensamento, consistente em encadear logicamente juízos e deles tirar uma conclusão. Essa operação é discursiva porque vai de uma idéias ou de um juízo a outro passando por um ou vários intermediários e exige o uso de palavras. portanto, é um conhecimento mediato, isto é, procede por mediação, por meio de alguma coisa. Por exemplo:
Toda baleia é mamífero.
Ora, nenhum mamífero é peixe.
Logo, a baleia não é peixe. P. 80.
4. Falácias
Ø A falácia é um tipo de raciocínio incorreto, embora tenha a aparência de correção. É conhecida também como sofisma ou paralogismo, e alguns estudiosos fazem a distinção entre eles, dando ao sofisma o sentido pejorativo decorrente da intenção de enganar o interlocutor, enquanto no paralogismo não haveria essa intenção.
As falácias podem ser formais, quando contrariam as regras do raciocínio correto, e não-formais, quando, segundo o professor norte-americano Irving Copi, os erros decorrem de "inadvertência ou falta de atenção ao nosso tema, ou então porque somos iludidos por alguma ambigüidade na linguagem usada para formular nosso argumento". P. 83.
CONHECIMENTO CIENTÍFICO
O que é ciência
. O senso comum
Ø Chamamos de conhecimento espontâneo ou senso comum o saber resultante das experiências levadas a efeito pelo homem ao enfren_(p.127) tar os problemas da existência. Nesse processo ele não se encontra, pois tem o concurso dos contemporâneos, com os quais troca informações. Além disso, cada geração recebe das anteriores a herança fecunda que não só é assimilada como também transformada. P. 128.
Ø O senso comum, enquanto conhecimento espontâneo ou vulgar, é ametódico e assistemático e nasce diante da tentativa do homem de resolver os problemas da vida diária. O homem do campo sabe plantar e colher segundo normas que aprendeu com seus pais, usando técnicas herdadas de seu grupo social e que se transformam lentamente em função dos acontecimentos casuais com os quais se depara.
É um tipo de conhecimento empírico, porque se baseia na experiência cotidiana e comum das pessoas, distinguindo-se por isso da experiência científica, que exige planejamento rigoroso. É também um conhecimento ingênuo: ingenuidade aqui deve ser entendida como atitude não-crítica, típica do saber que não se coloca como próblema e não se questiona enquanto saber. P. 128.
Ø O senso comum é freqüentemente um conhecimento subjetivo, o que ocorre, por exemplo, quando avaliamos a temperatura do ambiente com a nossa pele, já que só o termômetro dá objetividade a essa avaliação. Ainda mais: o senso comum depende de juízos pessoais a respeito das coisas, com envolvimento das emoções e dos valores de que observa. P. 128.
Ø Para evitar mal-entendidos, distinguimos os conceitos de senso comum e bom senso. Enquanto o senso comum é o conhecimento espontâneo tal como foi descrito, no seu caráter acrítico, difuso, fragmentário, dogmático, é possível transformá-lo em bom senso ao torná-lo organicamente estruturado, coerente e crítico. Para o filósofo italiano Gramsci, o bom senso é o núcleo sadio do senso comum. P. 129.
A psicanálise
Ø O termo psicanálise possui três sentidos: é um método interpretativo (hermenêutica), uma forma de tratamento psicológico (psicoterapia) e uma teoria, ou seja, um conhecimento que o método produz.
A psicasnálise surgiu com Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco, e sua principal novidade encontra-se na hipótese do inconsciente e na compreensão da natureza sexual da conduta. Apesar de também ter sofrido influência das idéias positivistas e(p.172) mecanicistas do século XIX, a teoria de Freud é duramente criticada pelas psicologias de linha naturalista, pois não usa a experiência no sentido tradicional do método científico, além de trabalhar com uma realidade hipotética, considerada inverificável nos moldes trdicionais: o inconsciente.
No entanto, a hipótese do inconsiente tornou-se fecunda, já que permitiu compreender uma série de acontecimentos da vida psíquica.
Para a psicanálise, todos os nossos atos têm uma realidade exterior representada na nossa conduta e significados ocultos que podem ser interpretados. Usando de uma metáfora, poderíamos dizer que a vida consciente é apenas a ponta de um iceberg, cuja montanha submersa simboliza o inconsciente.
A energia que preside os atos humanos é de natureza pulsional, e Freud põe em relevo a energia de natureza sexual chamada libido. Mas a sexualidade não deve ser identificada à genitalidade (ou aos atos que se referem explicitamente à atividade sexual propriamente dita), pois tem significado muito mais amplo, sendo toda e qualquer forma de gratificação ou busca do prazer. O reservatório das forças pulsionais chama-se id.
No entanto, para viver em comunidade, o homem precisa controlar e regular os desejos, adiando a satisfação de alguns e excluindo definitivamente outros... Com isso se forma a consciência moral ou superego.
Cabe ao ego maduro estabelecer o equilíbrio entre as forças antagônicas, a saber, o id, regido pelo "princípio do prazer", e o superego, adequando-as ao "princípio da realidade". Quando o conflito é muito grande e o ego não suporta a consciência do desejo, este é rejeitado, o que determina o processo chamado repressão. No entanto, o que foi reprimido não permanece no inconsiente, pois, sendo energia, precisa ser expandido. Reaparece então sob a forma de sintomas, ou representantes do reprimido, enquanto substituições para a gratificação instintiva não atingida. P. 173.
Ø Há várias formas para a sondagem do inconsciente, mas, para Freud, o caminho privilegiado é o fornecido pelos sonhos. Quando nos recordamos no enredo de um sonho, estamos diante do seu conteúdo manifesto, que às vezes nos parece incoerente e absurdo. Mas o sonho tem um conteúdo latente, que pode ser descoberto pela decifração do seu simbolismo. Para isso, Freud propõe a técnica da associação livre, pela qual o próprio indivíduo seguindo o fluxo espontâneo das idéias sai em busca do sentido oculto.
O psicanalista, ao auxiliar alguém na busca do que foi silenciado, exerce um papel catalisador, isto é, o de instrumento facilitador do processo desencadeador pelo próprio sujeito. Durante o tratamento ocorre o processo da transferência, quando o paciente dirige ao psicanalista afetos antigos de amor e hostilidade não percebidos como tais, o que permite a vivência de novas experiências, fecundas para a elucidação do que foi ocultado. P. 173.
O corpo
Ø Estamos habituados, pela tradição cartesiana , a nos desprendermos do objeto: a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo e a da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma com um ser presente inteiramente em si mesmo sem distância. Estas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: a transparência de um(p.176) objeto sem ondulações, transparência de um sujeito que só é o que pensa ser. O objeto é objeto de um lado a outro e a consciência de um lado a outro. Há dois sentidos, e somente dois, da palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio pelo contrário os revela um modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um feixe de processos na terceira pessoa - "visão", "motricidade", "sexualidade" - percebo que essas "funções" não podem estar unidas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, elas são todas confusamente retomadas e implicadas num drama único. O corpo não é pois um objeto. Pela mesma razão a consciência que tenho não é um pensamento, quer dizer que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade é sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa além do que é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que liberdade, enraizado na natureza no momento mesmo em que se transforma pela cultura, nunca fechado sobre si mesmo, e nunca ultrapassado. Se se trata do corpo de outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, quer dizer retomar por minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele. (M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. P. 208)
A sexualidade
Ø Mesmo com a sexualidade, que entretanto, passou por muito tempo por um tipo de função corporal, trata-se, não de um automatismo periférico, mas de uma intencionalidade que segue o movimento geral da existência. (...)
A sexualidade não é um ciclo autônomo. Ela está ligda interiormente a todo ser cognoscente e atuante, e esses três setores do comportamento manifestam uma única estrutura típica, estão numa relação de expressão recíproca. Reencontramo-nos aqui com as aquisições mais duráveis da psicanálise. Quaisquer que pudessem ter sido as declarações de princípio de Freud, as pesquisas psicanalíticas chegam de fato não a explicar o homem pela infra-estrutura sexual, mas a reencontrar na sexualidade as relações e as atitudes que antigamente passavam por relações e atitudes de consciência; e a significação da psicanálise não se encontra tanto em repetir a psicologia biológica, mas em descobrir, nas funções que se acreditara como "puramente corporais", um movimento dialético e reintegrar a sexualidade no ser humano. Um discípulo dissidente de Freud (W. Steckel) mostra, por exemplo, que a frigidez quase nunca está ligada a condições anatômicas ou fisiológicas, mas que ela traduz, a maior parte das vezes, a recusa ao orgasmo, à condição feminina ou à condição de ser sexuado, e este, por sua vez, a recusa ao parceiro sexual e ao destino que ele representa. Mesmo em Freud seria errado crermos que a psicanálise excluiu a descrição dos motivos psicológicos que se opõe ao método fenomenológico: ao contrário, ele contribuiu (sem o saber) para o seu desenvolvimento ao afirmar, segundo palavras de Freud, que todo ato humano "tem um sentido", e ao procurar, de todos os modos, compreender o acontecimento ao invés de ligá-lo a condições mecânicas. Em Freud mesmo, o sexual não é o genital, a vida sexual não é um simples efeito dos processos cujo centro são os órgãos genitais, a libido não é um instinto, isto é, uma atividade orientada para fins determinados, ela é o poder geral que tem o sujeito psicofísico de aderir a diferentes meios, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. Ela é o que faz com que o homem tenha uma história. Se a história sexual de um homem dá a chave de sua vida, é porque na sexualidade do homem se projeta sua maneira de ser com relação ao mundo, isto é, com relação ao tempo e aos outros homens. (...) A vida genital está imbricada na vida total do sujeito. (M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, p. 168) Ps. 176/177.
INTRODUÇÃO À POLÍTICA
1. Introdução
Ø Na conversa diária, usamos a palavra política de diversas formas que não se referem necessariamente a seu sentido fundamental. Assim, sugerimos a alguém que seja "mais político" na sua maneira de agir, ou nos referimos à "política" da empresa, da escola, da igreja, enquanto formas de exercício e disputa do poder interno. Podemos falar aindo do caráter político de um livro de literatura, ou da arte em geral.
Mais próximo do sentido de política que nos interessa nesta Unidade, sempre nos referimos à política quando tratamos de ciência, de moral e, especificamente, de trabalho, lazer, quadrinhos, corpo, amor, etc. Embora não se confunda com o objeto próprio de cada um desses assuntos, a política permeia todos eles.
Há também o sentido pejorativo de política, dado pelas pessoas desencantadas diante da corrupção e da violências, associando-a à "politicagem", falsa política em que predominam os interesses particulares sobre os coletivos.
Mas afinal, de que trata a política?
A política é a arte de governar, de gerir o destino da cidade. Etimologicamente política vem de pólis ("cidade, em grego).
Explicar em que consiste a política é outro problema, pois, se acompanharmos o movimento da história, veremos que essa definição varia e toma nuances as mais diferentes. O mesmo ocorre quando lembramos que o político é aquele que atua na vida pública e é investido do poder de imprimir determinado rumo à sociedade. P. 179.
Ø ... é possível entender a política como luta pelo poder: conquista, manutenção e expansão do poder.
É também indagar sobre a origem, natureza e significação do poder. Nessa última questão surgem problemas como: Qual é o fundamento do poder? Qual é sua legitimidade? É necessário que alguns mandem e outros obedeçam? O que torna viável o poder de um sobre o outro? Qual é o critério de autoridade? P. 179.
O poder
Ø Discutir política é referir-se ao poder. Embora haja inúmeras definições e interpretações a respeito do conceito poder, vamos considerá-lo aqui, genericamente, como(p.179) sendo a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos desejados sobre indivíduos ou grupos humanos. Portanto, o poder supões dois pólos: o de quem exerce o poder e daquele sobre o qual o poder é exercido. Portanto, o poder é uma relação, ou um conjunto de relações pelas quais indivíduos ou grupos interferem na atividade de outros indivíduos ou grupos. Ps. 179/180.
Poder e força
Ø Para que alguém exerça o poder, é preciso que tenha força, entendida como instrumento para o exercício do poder. Quando falamos em força, é comum pensar-se imediatamente em força física, coerção, violência. Na verdade, este é apenas um dos tipos de força.
Diz Gérard Lebrun: "Se, numa democracia, um partido tem peso político, é porque tem força para mobilizar um certo número de eleitores. Se um sindacato tem peso político, é porque tem força para deflagar uma greve. Assim, força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção, mas de meios de outra pessoa. A força não é sempre (ou melhor, é rarissimamente) um revólver apontado para alguém; pode ser o charme de um ser amado, quando me extorque alguma decisão (uma relação amorosa é, antes de mais nada, uma relação de forças; cf. as Ligações perigosas, de Laclos). Em suma, a força é a canalização da potência, é a sua determinação". P. 180.
O pensamento político de Aristóteles
Ø Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, logo se torna crítico do mestre e elabora uma filosofia original. Enquanto Platão privilegia a matemática, ciência abstrata por excelência, Aristóteles, filho de médico, é influenciado pelo estudo da biologia. Daí seu gosto pela observação e classificação, o que o leva a recolher informações sobre 158 constituições existentes.
Aristóteles critica o autoritarismo de Platão, considerqando sua utopia impraticável e inumana. Recusa a sofocracia platônica que atribui poder ilimitado a apenas uma parte do corpo social, os mais sábios, o que torna a sociedade muito hierarquizada. Não aceita a proposta de dissolução da família nem considera que a justiça, virtude por excelência do cidadão, possa vir separada da amizade. P. 194.
A cidade feliz
Ø A reflexão aristotélica sobre a política não se separa da ética, pois a vida individual está imbricada na vida comunitárias. Se Aristóteles conclui que a finalidade da ação moral é a felicidade do indivíduo, também a política tem por fim organizar a cidade feliz.
Por isso, diante da noção fria de justiça proposta por Platão, Aristóteles considera que a justiça não pode vir separada da philia. A palavra grega philia, embora possa ser traduzida por "amizade", é um conceito mais amplo quando se refere à cidade. Significa a concordância entre as pessoas que têm idéias semelhantes e interesses comuns,(p.194) donde resulta a camaradagem, o companheirismo. Daí a importância da educação na formação ética dos indivíduos, preparando-os para a vida em comunidade.
A amizade nãso se separa da justiça. Essas duas virtudes se relacionam e se complementam, fundamentando a unidade que deve existir na cidade. Se a cidade é a associação de homens iguais, a justiça é o que garante o princípio da igualdade. Justo é o que se apodera de parte que lhe cabe, é o que distribui o que é devido a cada um.
Mas é preciso lembrar que Aristóteles não se refere à igualdade simples ou aritmética, mas à justiça distributiva, segundo a qual a distribuição justa é a que leva em conta o mérito das pessoas. Isso significa que não se pode dar o igual para desiguais, já que as pessoas são diferentes.
A justiça está intimamente ligada ao império da lei, pela qual se faz prevalecer a razão sobre as paixões cegas. Retomando a tradição grega, a lei é para Aristóteles o princípio que rege a ação dos cidadãos, é a expressão política da ordem natural.
Mesmo considerando a importância das leis escritas, Aristóteles valoriza o direito consuedinário (ou seja, das leis não-escritas, trazidas pelo costume): "Com efeito, de nada serve possuir as melhores leis, mesmo que ratificadas por todo o corpo de cidadãos, se estes últimos não estiverem submetidos a hábitos e a uma educação presentes no espírito da Constituição".
Quem é cidadão?
Ø O fato de se morar na mesma cidade não torna seus habitantes igualmente cidadãos. São excluídos os escravos, os estrangeiros, as mulheres. O que também não significa que todo homem livre, nascido na pólis, possa participar da administração da justiça ou ser membro da assembléia governante. Para Aristóteles, é necessário ter qualidades que variam conforme as exigências da constituição aceita pela cidade.
De forma geral, Aristóteles concorda que o bom governante deve ter a virtude da prudência prática (phronesis), pela qual será capaz de agir visando o bem comum. Trata-se de virtude difícil, que não se acha disponível a muitos.
Por isso exclui da cidadania a classe dois artesãos, comerciantes e trabalhadores braçais em geral, em primeiro lugar porque a ocupação não lhes permite o tempo de ócio necessário para participar do governo e em segundo lugar porque, reforçando o desprezo que os antigos tinham pelo trbalho manual, Aristóteles pondera que esse tipo de atividade embrutece a alma e torna o indivíduo incapaz da prática de uma atividade esclarecida. P. 195.
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