sábado, 16 de agosto de 2008

BOFF, Leonardo. Nova era: a civilização planetária – desafios à sociedade e ao cristianismo. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1994.

Estamos assistindo a um fenômeno novo: o processo de mundialização que se dá pela via do mercado, da política, da estratégia militar, da tecnociência, da comunicação e da espiritualidade. Junto emerge um novo tipo de consciência, o patamar planetário, uma nova lógica, a da complexidade e, uma nova cosmologia. Esta nos habitua a ver a Terra com parte do cosmos, contemplada a partir da perspectiva dos astronautas. 07

As telecomunicações, a biotecnologia (a cadeia ADN-ARN do genoma humano contém todas as informações para a constituição do ser humano), a informática e robótica expressam tecnicamente esse novo conhecimento da realidade que é a informação. Sua aplicação traz vantagens evidentes para os cálculos, para a modelização de fenômenos e para os comandos de todos os tipos, inclusive em nossos automóveis comuns. 12

O efeito desta mutação tecnológica sobre as relações sociais de trabalho são diretas: dispensação continuada e irrecuperável da força de trabalho e exclusão crescente da participação humana no processo de produção. 12

A questão é nunca deixar de produzir cada vez mais. Em razão desta lógica devem-se suscitar, mesmo artificialmente, necessidades para satisfazê-las mediante uma maior produção. 14

Ora, a aplicação cada vez mais intensiva da tecnologia de informação gera estruturalmente dispensa de mão-de-obra. Aqui está a grande questão que afeta todos os países do mundo, mesmo pobres, pois estes também introduzem na máquina produtiva as novas tecnologias. 14

A informatização e robotização junto com as relações desiguais no comércio internacional, favorecendo os países ricos, à custa dos pobres, produziram este fenômeno surpreendente: nos últimos trinta anos a Europa triplicou sua riqueza e ao mesmo tempo diminui em um quarto o tempo de trabalho. 15

A base não é mais o trabalho, mas a comunicação e a informatização. 16

Todos se transformam em espectadores e querem sê-lo. É pelas imagens que os cidadãos se contemplam e projetam sua identidade. E a identidade de uma pessoa é mais e mais a imagem que se projeta dela para os outros e menos os que ela é em si mesma em sua profundidade, em sua dialogação consigo e com seu universo interior e exterior. Ou se participa efetivamente deste tipo de sociedade-espetáculo, sendo um ator real ou se participa pelo imaginário e pela imagem. Comenta José Comblin que as massas não praticam esporte, mas o vêem pela TV; não produzem música, mas escutam-na; não fazem história, mas comentam-na. Pela imagem se sentem também participantes e não excluídos da história. 17

Por imperativo de justiça ,e não de caridade social, deveriam conceder um salário de sobrevivência e de existência aos hoje pobres e colonizados de outrora. Isso exigiria, evidentemente, uma reorientação global da economia mundial. Mas ela seria possível tecnicamente, desde que uma visão da dignidade humana universal fosse se impondo como imperativo para todos os povos e houvesse a vontade política de encontrar os meios de sua implementação. 20

Agora importa colocar a economia a serviço do desenvolvimento social, a economia política a serviço do bem-estar da sociedade e da natureza. Uma economia da produção material ilimitada. 21

O mercado é uma entidade social e democrática indispensável, como o lugar onde se encontra a oferta com a procura e onde se atende às necessidades de consumo dos atores sociais. Portanto, precisamos de uma economia com o mercado e não uma economia só de mercado. 22

O fator ecológico faz-se presente hoje em dia de forma irrecusável. Ele deve ser tomado em alta conta junto com – e ainda mais que – os outros critérios de uma política econômica de desenvolvimento sustentado:
1. garantir a reprodução das forças produtivas e dos fatores de produção, sem a qual reentra a carência, a fome e a miséria;
2. produzir valores sócio-culturais que acompanhem as mudanças das condições de vida das sociedades, por isso sempre abertos, impedindo o desenraizamento cultural e o vazio de sentido de vida;
3. cuidar do meio ambiente com a aplicação de uma tecnologia que trabalha com a natureza e não à custa dela ou contra ela, visando extrair sem destruir e transformar sem desequilibrar e ecossistema. 22

Dois terços da humanidade está fora desta nova sociedade. Suas necessidades fundamentais estão ligadas à sobrevivência e ao trabalho do dia-a-dia. Precisam de ciência clássica e de técnica tradicional para garantir uma infra-estrutura higiênica mínima no bairro, com esgoto, serviço de água e gás, com transporte, escola, moradia, posto de saúde, segurança e espaços de lazer. 23

A centralidade da nova percepção reside em dar-se conta da complexidade da realidade. Junto ao sabido está sempre o não sabido; o contrário e antagônico não são negadores do real, mas manifestações de sua pluridimensionalidade; caos e ordem se pertencem mutuamente. 27

As culturas ameríndias e africanas são comunitárias; sempre produziram coletivamente num sentido profundamente ecológico entendendo o trabalho não como exploração desenfreada das potencialidades da natureza, mas como ajuda à mãe-terra na geração de bens necessários à vida e ao bem-estar comum. A colonização e o rolo compressor da lógica produtivista moderna destruíam aquelas formas culturais de produção. Hoje elas podem servir de inspiração a processos produtivos não espoliadores da natureza além de deverem ser reanimadas para aquelas populações originárias. 28

O processo mais visível de mundialização reside na crescente interdependência de todas as economias e na integração de todos os mercados, formando o mercado total. 31

Sem a socialização dos meios de vida e os recursos escassos da Terra, certamente não se garantirá a vida da maioria dos humanos nem da biosfera da qual o ser humano é parte e parcela. Novamente, impõe-se uma democracia social ecológica, planetária e cósmica, como alhures temos postulado. 34
A democracia somente funciona quando prévia a ela se instaura a atmosfera de respeito e promoção dos direitos do homem e da sociedade. 39

Efetivamente, cresce a consciência de que a Terra, quando vista de fora, é parte de um sistema muito maior que ela, do sistema solar, galáctico, do cosmos em expansão. Somos planeta de um sol que é uma das cem bilhões e estrelas de nossa Via-Láctea, que por sua vez é uma entre outras bilhões muito maiores do que ela. 41

A vida é uma emergência da Terra e a história da vida possibilitou a vida humana. 43

O código genético é igual em todos os seres vivos; as diferenças entre uma ameba, um dinossauro, um colibri e um homem (homem e mulher) se devem a diferentes combinações do mesmo alfabeto genético. Por sua vez o código genético não pode existir sem os elementos químicos e físicos dos quais se nutre; portanto, tudo está envolto pelo sistema-vida. Não é retórica nem romantismo chamar, como fazia S. Francisco, a todos os seres irmãos e de irmãs. Há uma base física para este parentesco real. Somos e fato e em verdade irmãos e irmãs cósmicos. 43

Não estaríamos hoje, com a complexificação dos meios de comunicação, com o estreitamento das interdependências, com a consciência da unificação da humaniade e a aceleradíssima mundialização, criando as condições para um novo patamar de hominização? Para a emergência de um sistema nervoso complexo e planetário e para um cérebro global? 46

A amorização significaria a forma mais alta de união de todos com todos e todos com tudo. 46

A mundialização embora tivesse partido do Ocidente, não pode significar a dominação da cultura ocidental, branca e cristã. A nova civilização incorpora e transfigura as contribuições de todas as culturas e das grandes tradições espirituais da humanidade no contexto de uma consciência planetária, de um novo tipo de cidadania, a cidadania terrenal e duma nova aliança com a natureza. 49

A fé-encontro pode ser expressa em muitas linguagens. Nunca se esgota aí totalmente. Por isso pode ser dita em outros códigos e em outros tempos. Ela é, por sua natureza, universalizável, porque também é uma experiência universal, quer dizer, transcultural e ocorre em todos os lugares e em toas as histórias. Por isso a fé une e cria comunidade. As traduções desta fé são sempre culturais, localizadas e datadas. Elas mostram a diferença. 52

O Reino de Deus não é um território, mas um modo de ser ou uma situação na qual reina a justiça, vigora a misericórdia, impera o amor, triunfa a vida e floresce a interiorização de Deus nas pessoas e na criação. 53

O Reino tem sua realização primeira nos seres mais ameaçados e nos humanos mais oprimidos e marginalizados. Por isso, o Reino possui uma ineludível dimensão libertadora: “felizes vocês pobres porque de vocês é o Reino de Deus” (Lc 6,20) 54

Um parto é sempre difícil e perigoso. O nasciturno passa pela pior crise de sua vida. 55

Efetivamente encontramo-nos num profundo processo de mundialização da economia, da ciência e da tecnologia, da comunicação, da informatização e das tendências dominantes da cultura central. Mais e mais se abandona a palavra-chave desenvolvimento. Em seu lugar entrou a palavra mercado, integração dos mercados continentais no mercado mundial. A palavra mágica que se encontra nas bocas de todos os chefes de estado é modernização ou modernidade. 63

Mas que é, na verdade, e o que quer o neo-liberalismo? Digamo-lo com todas as letras: é a fase atual de acumulação capitalista. A base da produção não é mais nacional ou transnacional, mas mundial. Usa-se para isso a tecnologia mais avançada e limpa que só os países no Norte detêm e não a comunicam aos países menos desenvolvidos. 63

O valor central é a privatização e a conseqüente exaltação do indivíduo. Exige-se a redução do papel do estado. Ele deve investir menos nas questões sociais, na saúde, na escola, na seguridade social. Propor isso aos países do Sul é condenar à morte multidões de pobres. Por quê? Porque a maioria desses países não fez ainda sua revolução social; e aí o único que cuida da saúde pública, da escola, da moradia e dos serviços básicos é justamente o estado. Fora ele, nenhuma empresa investe sem retorno em benefícios sociais. 63

O mercado é apresentado como a grande realidade, como uma lei natural, como a única forma de produção mundial. Não somos contra o mercado sem mais. Mas o mercado capitalista mundialmente integrado possui um mecanismo bem específico que traz perversas conseqüências. Neste mercado só se entra pela competitividade, que, por sua vez, possui uma lógica excludente. Só são competitivas as empresa e nações que utilizam as tecnológicas mais avançadas, raramente repassadas aos demais. Essas tecnologias são responsáveis pela modernização que traz avanços e lucros só aos mais fortes. 64

No neo-liberalismo, por causa da modernização e da competitividade, está presente uma lógica de exclusão. Os países do Sul, tecnologicamente atrasados, sem suficientes competitividade, com crises políticas internas devido à pobreza e à miséria, não são mais interessantes. Por isso há neles pouquíssimos investimentos estrangeiros. Nós não valemos, porque estamos fora do mercado. Quem está fora do mercado não existe. 64

A mundialização produz uma grande homogeneização. Pelo mundo todo, os mesmos valores do sistema global, as mesmas tendências culturais, o mesmo estilo de consumo. A virulência do mercado está destruindo as culturas indefesas. 65

A ciência e a técnica são as grandes armas do projeto de dominação dos povos e da natureza a fim de criar as condições de desenvolvimento e de felicidade do ser humano europeu. 67

O paradigma da modernidade se expressou em dois sistemas sociais antagônicos: o capitalismo e o socialismo. 67

O capitalismo privatizou os bens e socializou os sonhos. O socialismo socializou os bens e privatizou o sonho... O capitalismo privatizou os bens (as fábricas, terras, bancos são propriedade privada), mas deixou que os sonhos pudessem se exprimir por todos os meios de comunicação, especialmente pela propaganda e pela televisão. Quer dizer, permite a socialização dos sonhos. Apenas cuida para que os sonhos se realizem dentro dos limites impostos pelos interesses do capital. Numa favela pode faltar o pão, mas não o aparelho de televisão. Esta alimenta os sonhos pelas propagandas, pelas novelas e pelas imagens falantes. 67

O socialismo socializou os bens, as terras, as fábricas, a educação. Mas privatizou os sonhos. Somente eram aceitos os sonhos sonhados pelo partido único ou que estivessem em concordâncias com o único sonho socialista. Todos os demais sonhos era reprimidos e perseguidos. 67

Qual a suprema ironia? Depois de quinhentos anos, o sonho do desenvolvimento provocou o subdesenvolvimento da maioria dos países do mundo. A dominação da natureza provocou sua rebelião ameaçando, pela poluição, pelo buraco de ozônio e por outros desequilíbrios ecológicos, a vida das pessoas e outras espécies vivas. 68

Ora, o ser humano não é apenas um ser de necessidades, como um animal. É fundamentalmente um ser de relações, de solidariedade e de comunhão. Ele pode ter cuidado para com o mundo e ternura para com as pessoas humanas. Ele sonha com Deus. Ele não está condenado a ser cativo de suas necessidades e a ser lobo, mas a ser livre e amigo do outro ser humano. 68

Ora, as mulheres são mais da metade da humanidade e são as irmãs e as mães da outra metade, quer dizer, dos homens. Como pode ser sã uma sociedade que se assenta sobre a violência contra os outros, na agressão contra a natureza e na marginalização das mulheres. 69

A Terra e a natureza são reduzidas a um conjunto de recursos, disponíveis à ganância do ser humano que se entende como seu senhor. O nível de degradação da qualidade da vida é tão visível que são dispensadas quaisquer outras considerações. A questão que agora se coloca é esta: é possível manter a lógica do desenvolvimento ilimitado e ao mesmo tempo evitar a depredação da natureza e a produção da miséria no mundo? 70

O capitalismo criou uma cultura do eu sem o nós. O socialismo criou um cultura do nós sem o eu. Agora precisamos da síntese que permita a convivência do eu com o nós. 71

Talvez a melhor definição que tenha dado ao ser humano seja esta: ele é um nó de relações, voltado para todas as direções. Isso significa que ela é pessoa, quer dizer, um ser aberto (ex-instência) a dar e a receber, à participação, a solidariedade e à comunhão. Todos estes termos mostram que os caminhos humanos são de duas mãos. Quanto mais o ser humano se comunica, sai de si, se doa e recebe o dom do outro, mais pessoa ele é. 71

Herbert de Souza (Betinho) afirma que a democracia social está alicerçada em 4 pilares: participação, igualdade, diferença e comunhão.

Estamos lentamente regressando à nossa pátria comum. Surge, por todos os lados, uma relação mais benevolente e respeitosa com a natureza. Começamos a conviver com as montanhas, as matas, os animais, as aves e os elementos da natureza como irmãos e irmãs, solidários e um destino comum. Lentamente surge um sentido melhor para o desenvolvimento, como desenvolvimento social, fazendo dos pobres excluídos sujeitos de sua situação. 75

Ninguém pode ficar indiferente diante da tragédia dos pobres. Todos somos implicados e, por isso, mediante a solidariedade com os pobres, fazemos-nos também igreja dos pobres. 79

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