sábado, 16 de agosto de 2008

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma nova teoria. Porto Alegre: ATMED. Porto Alegre, 2000.

Ø A expressão "fracasso escolar" é uma certa maneira de verbalizar a experiência, a vivência e a prática; e, por essa razão, uma certa maneira de recortar, interpretar e categorizar o mundo social. p. 13.
Ø ... ela se tornou, mesmo tão extensa, que uma espécie de pensamento automático tende hoje a associá-la à imigração, ao desemprego, à violência, à periferia... p. 14.
Ø ... "fracasso escolar" é uma chave disponível para interpretar o que está ocorrendo nas salas de aula, nos estabelecimentos de ensino, em certos bairros, em certas situações sociais. Por outro lado, se esses objetos de discurso adquiriram tamanha evidência, se seu peso social e "mediático" tornou-se tão grande, é porque eles são portadores de múltiplos desafios profissionais, identitários, econômicos, sociopolíticos. A questão do fracasso escolar remete para muitos debates: sobre o aprendizado, obviamente, mas também sobre a eficácia dos docentes, sobre o serviço público, sobre a igualdade das "chances", sobre os recursos que o país deve investir em seu sistema educativo, sobre a "crise", sobre os modos de vida e o trabalho na sociedade de amanhã, sobre as formas de cidadania, etc. todas as noções que encobrem, pois, práticas e experiências muitos diversas e se beneficiam ao mesmo tempo de uma espécie de evidência encontram-se na encruzilhada de múltiplas relações sociais. Enquanto "noções - encruzilhada", exercem um papel de "atrativo". Enquanto inscritas em relações sociais de natureza diversa, prestam-se muito bem para um uso ideológico: o debate sobre o fracasso escolar enquanto desigualdade social pode ser desviado para a questão da ineficácia pedagógica dos docentes... e vice-versa. P. 14.
Ø A característica do pesquisador é a de questionar a questão que lhe é feita, interrogar os termos nos quais ela é formulada. Deve desconstruir e reconstruir o objeto que lhe é proposto e a questão que lhe é submetida. Isso é muito difícil, tanto mais, que esse objeto parece amiúde evidente para o próprio pesquisador, o qual se vê preso, enquanto pessoa particular, nos desafios ideológicos que conferem uma aparente consistência ao objeto. P. 15.
Ø Por que estudarmos a relação dos alunos com o saber e, não, o fracasso escolar, visto ser ele que nos interessa diretamente? Porque, estritamente falando, não existe o "fracasso escolar". é verdade que os fenômenos designados sob a denominação de fracasso escolar são reais. Mas não existe um objeto "fracasso escolar", analisável como tal. Para estudar o que se chama o fracasso escolar, deve-se, portanto, definir um objeto que possa ser analisado. Detenhamo-nos um pouco nesse ponto.
Existe, é claro, alunos que não conseguem acompanhar o ensino que lhes é dispensado, que não adquirem os saberes que supostamente deveriam adquirir, que não constroem certas competências, que não são orientados para a habilitação que desejariam, alunos que naufragam e reagem com condutas de retração, desordem, agressão. É o conjunto desses fenômenos, observáveis, comprovados, que a opinião, a mídia, os docentes agrupam sob o nome de "fracasso escolar". p. 16.
Ø ... Afirmar que o "fracasso escolar" não existe, é recusar esse modo de pensar sob o qual insinuam-se as idéias de doença , tara congênita, contágio, evento fatal. Ao escutarmos tais discursos, temos amiúde o sentimento de que se é hoje "vítima" do fracasso escolar, assim como outrora éramos da peste. O fracasso escolar não é um monstro escondido no fundo das escolas e que se joga sobre as crianças mais frágeis, um monstro que a pesquisa deveria desemboscar, domesticar. Abater. O "fracasso escolar" não existe, o que existe são alunos fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal. Esses alunos, essas situações, essas histórias é que devem ser analisados, e não algum objeto misterioso, ou algum vírus resistente, chamado "fracasso escolar". p. 16.
Ø O fracasso escolar é uma diferença entre alunos, entre currículos, entre estabelecimentos. P. 17.
Ø ... o aluno em situação de fracasso ocupa no espaço escolar uma posição diferente da do aluno em situação de êxito - sendo essas posições avaliadas em termos de notas, indicadores de sucesso, aos de atraso, lugar num sistema escolar hierarquizado, etc. p. 17.
Ø Esse tipo de sociologia não trata, na verdade, senão de diferenças e recorre essencialmente à ferramenta que permite apreender e processar diferenças: a estatística. P. 17.
Ø Seus resultados têm sido amplamente utilizados para afirmar que a origem social é causa do fracasso escolar e que os alunos em situação de fracasso padecem deficiências socioculturais: a posição torna-se, então, origem e a diferença é vista como falta. Deveremos interessar-nos por esse tipo de discurso também. P. 17.
Ø Para compreenderem-se as posições escolares dos alunos (e, portanto, suas futuras posições sociais), é preciso compará-las com as posições sociais dos pais. Mais precisamente ainda, 'Bordieu raciocina em termos de sistemas de diferenças" às diferenças de posições escolares dos filhos e, mais tarde, diferenças de posições sociais entre esses filhos na idade adulta. Há a reprodução das diferenças. Como se opera essa reprodução? Novamente através de diferenças: às diferenças de posições dos pais correspondem nos filhos diferenças de "capital cultural" e de habitus (disposições psíquicas), de maneira que os filhos ocuparão eles próprios posições diferentes na escola. P. 20.
Ø Mais ainda: a posição social da família não pode ser apreendia unicamente em termos socioprofissionais; assim, J.P. Terrail (1984b) e J. P. Laurens (1992) mostraram que a prática religiosa e a militância política também podiam ter efeitos sobre a posição escolar das crianças. Semelhante resultado incita a não nos restringirmos às posições das famílias, mas a nos interessarmos também pelas práticas educativas familiares. C. Montandon(1994), entretanto, chega à conclusão de que "é impossível deduzir o conjunto das estratégias das famílias ou de suas atitudes para com a escola da classe social à qual pertencem".
Finalmente, duas crianças que pertencem à mesma família, cujos pais tem, portanto, a mesma posição social, podem obter resultados escolares muito diferentes. Essa constatação nos lembra que uma criança não é apenas "filho de" (ou "filha de"). Ela mesma ocupa uma certa posição na sociedade. Essa posição tem a ver com a dos pais, mas não se reduz a ela e depende também do conjunto das relações que a criança mantém com adultos e outros jovens. A posição da própria criança se constrói ao longo de sua história e é singular. (p.22). Para compreender-se o sucesso ou o fracasso escolar dessa criança, essa singularidade deve ser tomada em consideração. P. 22/23.
Ø ... A posição dos filhos não é "herdada", à maneira de um bem que passase de uma geração a outra por uma vontade testamental; ela é produzida por um conjunto de práticas familiares: as dos pais (que supervisionam os temas de casa, levam os filhos aos museus, a concertos, em viagens, levam-nos à aula de dança, ao tênis, etc.) e as dos filhos (os "herdeiros" sabem muito bem que não basta ser "filho de" para Ter sucesso na escola, mas que é preciso trabalhar, esforçar-se muito). O sucesso na escola não é questão de capital, mas de trabalho; mais exatamente: atividades, práticas. P. 22.
Ø Resumamos. Para analisarmos o fracasso escolar, devemos levar em consideração:
. o fato de que ele "tem alguma coisa a ver" com a posição social da família - sem por isso reduzir essa posição a um lugar em uma nomenclatura socioprofissional, nem a família a uma posição;
. a singularidade e a história dos indivíduos;
. o significado que eles conferem à sua posição (bem como à sua história, às situações que vivem e à sua própria singularidade);
. sua atividade efetiva, suas práticas;
. a especificidade dessa atividade, que se desenrola (ou não) no campo do saber. P. 23.
Ø afirmar que a origem social é a causa do fracasso escolar é cometer dois erros. Por um lado, significa passar de variáveis construídas pelo pesquisador (as posições) para realidades empíricas (designadas como origem ou fracasso escolar). por outro lado, é interpretar um vínculo, também construído (a correlação) em termos de causa efetiva, de ação empírica. É verdade que o fracasso escolar "tem alguma coisa a ver" com a origem social (caso contrário, não haveria nenhuma correlação entre as duas variáveis), mas a origem social não produz o fracasso escolar. uma das funções da pesquisa é precisamente transformar esse "alguma coisa a ver" em enunciados claros e rigorosos. P. 25.
Ø Existem diversas formas da teoria da deficiência. John Ogbu(1978) distingue três. Em primeiro lugar, a teoria da privação: a deficiência é o que falta para as crianças terem sucesso na escola. Em segundo lugar, a teoria do conflito cultural: a deficiência é a desvantagem dos alunos cuja cultura familiar não está conforme com a que o sucesso escolar supões. Em terceiro lugar, a teoria da deficiência institucional: nesse caso, a deficiência é uma desvantagem gerada pela própria instituição escolar, em sua maneira de tratar as crianças das famílias populares (currículos, programas, expectativas dos docentes...). p. 26.
Ø O HANDICAP é, primeiramente, o fato de impor-se uma desvantagem a um cavalo mais rápido. Aquele que fica "desfavorecido" é o cavalo mais rápido, do qual se retira uma vantagem e que não será mais, pois, o "favorito" da corrida. Não é desfavorecido em si: é propositadamente desfavorecido. O que é pensado assim na idéia de deficiência é a produção de uma compensação (proporcional à vantagem inicial). Ou seja, é uma relação.
A seguir, no entanto, a noção se vê invertida em vários pontos, correlativos. O HANDICAP torna-se a deficiência na qual padece uma pessoa que, por isso mesmo, encontra-se em posição de inferioridade: doravante, o mais fraco é que é desfavorecido, e não o mais forte; além disso, ninguém quis essa deficiência, somente fica constatado. O HANDICAP não designa mais a comnpensação de uma superioridade, mas aquilo que deve ser compensado, a deficiência do mais fraco: o HANDICAP não é mais pensado como uma relação, mas sim, como uma falta que caracteriza o mais fraco. P. 27.
Ø A deficiênia é uma falta, pois, dada como constitutiva do indivíduo. Mas, falta de quê? Mais uma vez, é interessante identificar o modo de pensar aí implícito. Quando um aluno está em situação de fracasso, constatam-se efetivamente faltas, isto é, diferenças entre esse aluno e os outros, ou também entre o que se esperava e o resultado efetivo. O aluno não sabe, não sabe fazer, não é isso ou aquilo. Poder-se-ia então interessar-se pela atividade do aluno e a do professor e perguntar-se o que foi que aconteceu, no que, onde a atividade não funcionou. Mas não é assim que se faz, quando se raciocina em termos de deficiências. Ao constatar-se uma "falta" no fim da atividade, essa falta é projetada, para o início dessa atividade: faltam ao aluno em situação d fracasso recursos iniciais, intelectuais e culturais, que teriam permitido que o aprendizado (e o professor...) fosse eficaz. Ele é deficiente. P. 27.
Ø Por um lado, preserva-os de qualquer crítica direta: o fracasso escolar não é imputável às práticas docentes, mas, sim, aos alunos e às suas famílias. Mas não será isso culpar os meios populares? Não, pois os alunos e suas famílias sãs as primeiras vítimas dessas deficiências que produzem o fracasso escolar. assim sendo, o "verdadeiro" responsável é a própria sociedade, que produz e reproduz desigualdades, faltas e deficiências. P. 29.
Ø ... Procurar compreender o fracasso como uma situação que advém durante uma história é considerar que todo o indivíduo é um sujeito, por mais dominado que seja. Um sujeito que interpreta o mundo, resiste à dominação, afirma positivamente seus desejos e interesses, procura transformar a ordem do mundo em seu próprio proveito. Praticar uma leitura positiva é recusar-se a pensar o dominado como um objeto passivo, "reproduzido" pelo dominante e completamente manipulado, até, inclusive, em suas disposições psíquicas mais íntimas. Mas sem incorrer em ingenuidade e sem esquecer que o dominado é, com certeza, um sujeito, porém um sujeito dominado. P. 31.
Ø O aluno em situação de fracasso é um aluno, o que nos induz imediatamente a pensá-lo como tal, em referência à sua posição no espaço escolar, aos conhecimentos, às atividades e às regras específicas da escola. Mas o aluno é também, e primeiramente, uma criança ou um adolescente, isto é, um sujeito confrontado com a necessidade de aprender e com a presença, em seu mundo, de conhecimentos de diversos tipos.
Um sujeito é:
. um ser humano , aberto a um mundo que não reduz ao aqui e agora, portador de desejos movido por esses desejos, em relação com outros seres humanos, eles também sujeitos;
. um ser social, que nasce e cresce em uma família (ou eu um substituto da família), que ocupa uma posição em um espaço social, que está inscrito em relações sociais;
. um ser singular, exemplar único da espécie humana, que tem uma hi8stória, interpreta o mundo, dá um sentido a esse mundo, à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história, à sua singularidade. P. 33.
Esse sujeito:
. Age no e sobre o mundo;
. encontra a questão do saber como necessidade de aprender e como presença no mundo de objetos, de pessoas e de lugares portadores de saber;
. se produz ele mesmo, e é produzido, através da educação. P.33
Estudar a relação com o saber é estudar esse sujeito enquanto confrontado com a necessidade de aprender e a presença de "saber" no mundo. P. 34..
Ø Para Durkhein, a sociedade é uma realidade específica, não pode ser reduzida a uma soma de indivíduos e os fatos, pois, não podem ser explicados através de fatos psíquicos. Mas dizer que os fatos sociais devem ser considerados como coisas, e estudados como tais, não significa em absoluto que esses fatos sociais sejam coisas com a mesma natureza que os objetos materiais: os fatos sociais são "modos de agir, de pensar e sentir, exteriores ao indivíduo, e dotados de um poder de coerção em virtude do qual se impõem a ele" (1985). Ou seja, não se pode analisar o social sem aprender "modos de agir, pensar e sentir". Deve-se, porém, estudá-los como exteriores ao indivíduo. Toda a dificuldade está aí: pensar um psiquismo sem sujeito; ou, mais exatamente, um psiquismo analisado em referência à sociedade e não ao sujeito. P. 34.
Ø Em outras palavras, o social torna-se psíquico quando passa do "exterior" para o "interior"; e por isso mesmo o interior (o que chamamos a subjetividade) tem seu princípio de inteligibilidade no exterior (no espaço das posições sociais). Isso, no entanto, significa ignorar o fato de que o "interior", o psíquico, a subjetividade têm leis próprias de organização e funcionamento, irredutíveis às do "exterior", do social, de um espaço de posições.
Ø Assim como a sociedade, a escola não pode mais ser analisada como um sistema regido por uma lógica única, "como uma instituição que transforma princípios em papéis", ( 1996). Ela também é estruturada por várias lógicas de ação: a socialização, a distribuição das competências, a educação. Assim sendo, o sentido da escola deixa de ser dado e deve ser construído pelos atores: definir-se-á a experiência escolar como sendo a maneira como os atores, individuais ou coletivos, combinam as diversas lógicas da ação que estruturam o mundo escolar. ora, lembremos que essa atividade de articulação entre as lógicas da ação "constitui a subjetividade do ator". A experiência escolar, pois, produz subjetividade; e experiências escolares diferentes geram formas diferentes de subjetividade: assim, a escola "fabrica, ou contribui para fabricar, atores e sujeitos de natureza diferente". P. 39.
Ø Nessa teoria, o que define primeiramente o sujeito é a distância. A subjetivação leva "os indivíduos a distanciar-se de si próprio, que faz do autor um sujeito" (1994). Esse distanciamento torna-se possível pela multiplicidade das lógicas sociais, mas essa própria multiplicidade induz nos indivíduos uma atividade de articulação das diversas lógicas: "a dinâmica grada por essa atividade é que constitui a subjetividade do ator". Ou seja, a subjetividade nasce da heterogeneidade do social, da distância do indivíduo em relação aos seus Eus sociais, de uma atividade de unificação de si. Existe aí um intuição correta do que seja o sujeito. O que DUBET nos diz, na verdade, é que o sujeito não pode ser reduzido à interiorização do social (a Eus sociais) e que ele é portador de uma exigência de unidade. Ao nos atribuirmos "Eus sociais" constituídos por interiorização de uma posição, de um papel, de uma norma, de uma estratégia, etc., o sujeito não é encontrado. Por um lado, porque o sujeito não é o social interiorizado. Por outro, porque o sujeito é uma forma de unidade que não pode ser constituída pela adição de Eus sociais: "o ator não se reduz à soma de seus aprendizados sociais" (1996). Em outras palavras, todo o pensamento de Dubet deveria levá-lo a abordar a especificidade do sujeito. P. 42.
Ø Uma sociologia do sujeito não pode correr o risco de deixar de lado a psicologia e seus conhecimentos. Mas nem toda psicologia tem uma utilidade igual para o sociólogo. Assim, a psicologias de Piaget não lhe proporcionará muito. Trata-se, com efeito, fundamentalmente, de uma psicologia do desenvolvimento que encontre suas referências na biologia e na lógica, mesmo que não ignore totalmente a dimensão social do desenvolvimento da criança. Uma sociologia do sujeito só pode dialogar com uma psicologia que estabeleça como princípio que toda a relação de mim comigo mesmo passa pela minha relação com o outro. Portanto, é precisamente esse, hoje, um dos princípios básicos da psicologia clínica.
A psicanálise apoia-se amplamente em tal princípio. Freud o implementa através de conceitos como identificação, sublimação, Superego. Lacan desenvolve uma teoria na qual o outro está no cerne do sujeito, atribuindo uma grande importância ao estágio do espelho, essa primeira relação consigo mesmo que é relação consigo mesmo enquanto outro (Ogilvie, 1987). Ps. 45/46.
Ø Wallon escreve: "O indivíduo, se ele se reconhece como tal, é essencialmente social; o é, não em conseqüência de contingências externas, mas, sim, de uma necessidade íntima; e o é geneticamente" (1946). Para Wallon, com efeito, o eu e o outro estão ligados para sempre. Constituem-se conjuntamente, a partir de um estado inicial de indistinção; e o Outro permanece um "parceiro perpétuo do Eu na vida psíquica", esse fantasma de outrem que cada um leva dentro de si" (1946).
Seguindo outro caminho, Vygotsky também diz que o homem é geneticamente social. "Cada função psíquica superior aparece duas vezes durante o desenvolvimento da criança; primeiro, como atividade coletiva, social, e, portanto, como função interpsíquica; depois uma segunda vez, como atividade individual, como propriedade interna do pensamento da criança, como função intrapsíquica" (1933). Assim, a linguagem não é egocêntrica antes de ser socializada, como em Piaget; é, primeiro, forma de troca social, a seguir, diálogo egocêntrico, depois, linguagem interna (1934). Mas essa interioridade é pensada como modo de funcionamento específico do psiquismo e, não como interiorização: "A transferência (das funções psíquicas) para o interior está ligada a mudanças nas leis que regem sua atividade; elas são incorporadas em um novo sistema que possui suas próprias leis" (1930).
Observemos, finalmente, que filósofos e antropólogos também afirmam o princípio de que a relação consigo supões a relação com o outro. Assim, toda a obra de Girard se fundamenta na idéia de que o desejo é desejo do desejo do outro (Girard, 1982; Martinez, 1996).
Toda relação consigo é também relação com o outro, e toda a relação com o outro é também relação consigo próprio. Há aí um princípio essencial para a construção de uma sociologia do sujeito: é porque cada um leva em si o fantasma do outro e porque, inversamente, as relações sociais geram efeitos sobre os sujeitos que é possível uma sociologia do sujeito. Aí, também, um princípio fundamental para compreender-se a experiência escolar e para analisar-se a relação com o saber: a experiência escolar é, indissociavelmente, relação consigo, relação com os outros (professores e colegas), relação com o saber. Ps. 46/47.
Ø Não há relação com o saber senão de parte de um sujeito; e o sujeito é desejo; concordo plenamente; e por ignorar essa dinâmica do desejo é que a sociologia fica amarrada num psiquismo sem sujeito. Endosso também as fórmulas com as quais J. Beillerot lembra o que é desejo. O desejo é "uma aspiração primeira", "causa é o desejo e, não, o objeto". Contudo, se é certo que o desejo é dado básico, se é certo que o desejo se define enquanto tal, mesmo definindo enquanto tal e não partir do objeto de desejo. Esse objeto, em última análise, sempre é o outro. "Outrem está na mira do desejo, outrem enquanto pessoa; a um desejo só outro desejo concerne; o desejo visa àquilo que no outro designa um outro desejo". Eu não pensaria, nem por um momento, pois, em negar que haja um lugar para um trabalho psicanalítico sobre o desejo de saber e sobre a relação com o saber. P. 47.
Ø Kant já escrevia, no fim do século XVIII: "O homem é a única criatura que precisa ser educada (...) Por ser dotado de instinto, um animal, ao nascer, já é tudo o que pode ser;: uma razão alheia jás cuidou de tudo para ele. O homem, porém, deve servir-se de sua própria razão. Não tem instinto e deve determinar ele próprio o plano de sua conduta. Ora, por não ter de imediato capacidade para fazê-lo, mas, ao contrário, entrar no mundo, por assim dizer, em estado bruto, é preciso que outros o façam para ele". Em 1796, Fichte retoma essa idéia: "Em uma palavra, todos os animais são acabados e perfeitos; o homem é apenas indicado, esboçado (...) Todo o animal é o que é; somente o homem não é, na origem, nada. Deve tornar-se o que deve ser; e porque deve ser um ser-para-si, deve tornar-se isso por si mesmo. A natureza acabou todas as suas obras; mas abandonou o homem e o entregou a ele próprio(...) Se o homem é um animal, trata-se então de um animal extremamente imperfeito e por essa mesma razão não é um animal. O essencial já está aí: o homem não é, deve tornar-se o que deve ser; para tal, deve ser educado por aqueles que suprem sua fraqueza inicial e deve educar-se, "tornar-se por si mesmo". Ps. 51/52.
Ø Mas a prematuração do homem é apenas uma face da condição humana, inseparável de sua outra face: o homem sobrevive por nascer em um mundo humano, pré-existente, que já é estruturado. Lucien Sève centrou seus trabalhos nessa outra face (1968). Ele lembra e desenvolve a Sexta tese de Marx sobre Feuerbach: "A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo considerado à parte. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais". É verdade que a criança está mal equipada ao nascer, mas ela beneficia-se da "fabulosa riqueza de seu 'equipamento' social excentrado". "Em outras palavras, a essência originária do indivíduo humano não está dentro dele mesmo, mas, sim, fora, em uma posição excêntrica, no mundo das relações sociais". A humanidade (no sentido de 'ser homem'), em oposição à animalidade (o 'ser animal') não é dado presente por natureza em cada indivíduo isolado, é o mundo social humano; e cada indivíduo torna-se humano ao 'hominizar-se' através de seu processo de vida real no âmago das relações sociais". Ou seja, a condição humana não é apenas a ausência do ser na criança que nasce; é também o ingresso em um mundo onde o humano existe sob a forma de outros homens e de tudo o que a espécie humana construiu anteriormente. A educação é essa apropriação, sempre parcial, de uma essência excêntrica do homem. P. 52.
Ø Por sua condição o homem é um ausente de si mesmo. Carrega essa ausência em si, sob forma de desejo. Um desejo que sempre é, no fundo, desejo de si, desse ser que lhe falta, um desejo impossível de saciar, pois saciá-lo aniquilaria o homem enquanto homem. .p.52.
Ø Mas o homem está presente também sob forma de um mundo, um mundo humano produzido pela espécie ao longo de sua história e que existe antes da criança, sob a forma de estruturas, ferramentas, relações, palavras e conceitos, obras.
Essa ausência de si mesmo/presença em si fora de si mesmo é a própria condição do homem. Constitui-o como sujeito e mantém a dinâmica do desejo, que não pode ser reduzido a uma pulsão orgânica em busca de objeto. Mas nem por isso esse sujeito se reduz ao desejo, e à relação com o outro enquanto pessoa. É também um corpo "engajado" em um mundo onde deve sobreviver, agir, produzir, mesmo que, em um primeiro tempo, essa necessidade seja assumida por outros. O mundo não se sobrepõe a um universo onde estariam apenas o sujeito e o outro, unidos e divididos em relações de desejo. O mundo está aqui, imediatamente; nele, o outro e a eternidade assumem formas, "concretas", sociais. Mesmo sendo a estrutura fundamental do sujeito, o desejo ainda é "desejo de" e esse "de" remete a uma alteridade que tem uma forma social, quer se trate do outro como pessoa, quer como objeto do desejo.
Nascer é penetrar nessa condição humana. Entrar em uma história, a história singular de um sujeito inscrita na história maior da espécie humana. Entrar em um conjunto de relações e interações com outros homens. Entrar em um mundo onde ocupa um lugar (inclusive, social) e onde será necessário exercer uma atividade.
Por isso mesmo, nascer significa ver-se submetido à obrigação de aprender. Aprender para construir-se, em um triplo processo de "hominização" (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único de homem), de socialização (tornar-se um membro de uma comunidade, partilhando seus valores e ocupando um lugar nela). Aprender para viver com outros homens com quem o mundo é partilhado. Aprender para apropriar-se do mundo, de um parte desse mundo, e para participar da construção de um mundo pré-existente. Aprender em uma história que é, ao mesmo tempo, profundamente minha, no que tem de única, mas que me escapa por toda a parte. Nascer, aprender, é entrar em um conjunto de relações e processos que constituem um sistema de sentido, onde se diz quem eu sou, quem é o mundo, quem são os outros..
Esse sistema se elabora no próprio movimento através do qual eu me construo e sou construído pelos outros, esse movimento longo, complexo, nunca completamente acabado, que é chamado educação. P. 53.
Ø A educação é uma produção de si por si mesmo, mas essa autoprodução só é possível pela mediação do outro e com sua ajuda. A educação é produto de si por si mesmo; é o processo através do qual a criança que nasce inacabada se constrói enquanto ser humano, social e singular. Ninguém poderá educar-me se eu não consentir, de alguma maneira, se eu não colaborar; uma educação é impossível, se o sujeito a ser educado não investe pessoalmente no processo que o educa. Inversamente, porém, eu só posso educar-me numa troca com os outros e com o mundo; a educação é impossível, se a criança não encontra no mundo o que lhe permite construir-se. Toda educação supõe o desejo, como força propulsionadora que alimenta o processo. Mas só há força de atração: o desejo sempre é "desejo de"; a criança só pode construir-se porque o outro e o mundo são humanos e, portanto, desejáveis. Chega-se à mesma conclusão raciocinando-se a partir dos educadores e da sociedade que têm o projeto de formar a criança. Para reproduzir-se, devem produzir filhos; engendrá-los, mas também produzi-los como seus filhos, membros de uma família e de uma sociedade num momento da história. P. 54.
Ø A criança mobiliza-se, em uma atividade, quando investe nela, quando faz uso de si mesma como de um recurso, quando é posta em movimento por móbeis que remetem a um desejo, um sentido, um valor. A atividade possui, então, uma dinâmica interna. Não se deve esquecer, entretanto, que essa dinâmica supões uma troca com o mundo, onde a criança encontra metas desejáveis, meios de ação e outros recursos que não ela mesma. P. 55.
Ø Auxiliar-me-á um artigo de Francis Jacques intitulado "De la signifiance" (1987). Um enunciado é significante se tiver um sentido (plano sintático, o da diferença), se disser algo sobre o mundo (plano semântico, o da referência) e se puder ser entendido em uma troca entre interlocutores (plano pragmático, o da comunicabilidade). "Significar é sempre significar algo a respeito do mundo para alguém ou com alguém". Tem "significação" o que tem sentido, que diz algo do mundo e se pode trocar com outros. Que será o sentido, estritamente dito? É sempre o sentido de um enunciado, produzido pelas relações entre os signos que o constituem, signos esses que têm um valor diferencial em um sistema.
Ao traduzir (muito livremente...) essa análise, para utilizá-la fora de seu campo, o da linguagem e da interlocução, proporei uma tripla definição: têm sentido uma palavra, um enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros em um sistema, ou em um conjunto; faz sentido para um indivíduo algo que lhe acontece e que tem relações com outras coisas de sua vida, coisas que ele já pensou, questões que ele já se propôs. É significante (ou, aceitando-se essa ampliação, tem sentido) o que produz inteligibilidade sobre algo, o que aclara algo no mundo. É significante (ou, por ampliação novamente, tem sentido) o que é comunicável e pode ser entendido em uma troca com outros. Em suma, o sentido é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros. P. 56.
Ø conviria no entanto distinguir o sentido enquanto "desejabilidade" valor (positivo ou negativo) e o sentido simplesmente ligado à significação. Quando eu digo "isso tem realmente um sentido para mim", estou indicando que dou importância a isso, que para mim isso tem um valor (ou, se isso não tiver sentido, é porque, como dizem os colegiais, "não vale nada"). Mas quando digo que "não entendo nada", isso quer dizer simplesmente que o enunciado ou o acontecimento não têm significado.
Vale precisar também que uma coisa pode fazer sentido para mim sem que eu saiba claramente por que, não saibas nem sequer que ela faz sentido. Toda a psicanálise está aí para mostrar isto: não somos transparentes para nós mesmo. P. 57.
Ø o sujeito cuja relação com o saber estudamos não é, portanto, nem uma misteriosa entidade substancial definida pela Razão, a liberdade ou o Desejo, nem um sujeito encerrado em uma inapreensível intimidade, nem um sucedâneo de sujeito construído por interiorização do social em um psiquismo de ficção, mas, sim, um ser humano levado pelo desejo e aberto para um mundo social no qual ele ocupa uma posição e do qual é elemento ativo. Esse sujeito pode ser analisado de modo rigoroso: constitui-se através de processos psíquicos e sociais que podem ser analisado, define-se com um conjunto de relações (consigo, com os outros e com o mundo) que pode ser conceitualmente invariado e articulado. P. 57.
Ø Nascer é ingressar em um mundo no qual estar-se-á submetido à obrigação de aprender. Ninguém pode escapar dessa obrigação, pois o sujeito só pode "tornar-se" apropriando-se do mundo.
São muitas as maneiras, no entanto, de apropriar-se do mundo, pois existem muitas "coisas" para aprender. Aprender pode ser adquirir um saber, no sentido estrito da palavra, isto é, um conteúdo intelectual ("meter coisas na cabeça", como os jovens dizem): significa, então, aprender a gramática, a matemática, a data da batalha de Marignan, a circulação do sangue, a história da arte... Mas, aprender pode ser também dominar um objeto ou uma atividade (atar os cordões dos sapatos, nadar, ler...) ou entrar em formas relacionais (cumprimentar uma senhora, seduzir, mentir...). a questão do "aprender" é muito mais ampla, pois, do que a do saber. É mais ampla em dois sentidos: primeiro, como acabo de ressaltar, existem maneiras de aprender que não consistem em apropriar-se de um saber, entendido como conteúdo de pensamento, segundo, ao mesmo tempo em que se procura adquirir esse tipo de saber, mantêm-se, também, outras relações com o mundo. P. 59.
Ø Adquirir saber permite assegurar-se um certo domínio do mundo no qual se vive, comunicar-se com outros seres e partilhar o mundo com eles, viver certas experiências e, assim, tornar-se maior, mais seguro de si, mais independente. Existem outras maneiras, entretanto, para alcançar os mesmo objetivos. Procurar o saber é instalar-se num certo tipo de relação com o mundo; mas existem outros. Assim, a definição do homem enquanto sujeito de saber se confronta à pluralidade das relações que ele mantém com o mundo.
É o caso da filosofia clássica, que define a essência do homem pela Razão, a mente, o entendimento, em suma, qualquer que seja o nome que lhe é dado, pela faculdade que lhe permite ser um puro sujeito de saber. Ao longo de sua história, embora sob formas variadas, ela encena o combate da Razão contra as paixões, as emoções, e, em última instância, o corpo. Trata-se na verdade, de cortar todos os vínculos do sujeito com o mundo, para conservar apenas um: a relação do sujeito enquanto Razão com o saber enquanto idéia.
Não é tão fácil assim, porém, desvelar esse feixe de vínculos que une o sujeito, de múltiplas maneiras, com o mundo e com os outros. Dispensar as paixões e convocar a Razão é uma bela ambição, mas, para isso, a própria Razão não deve ser as máscara com a qual as paixões se escondem. Marx, Freud, Nietsche, Bordieu, Foucalt e vários outros têm-nos ensinado que a ideologia, o inconsciente, o desejo de poder, a dominação simbólica, a vontade de controlar, vigiar e punir tomam emprestadas à Razão suas formas e suas argumentações. A razão é uma forma de relação com o mundo que constantemente se reveste de outras formas, que não pertencem ao domínio da Razão: atrás do sujeito de saber, a análise traz à tona as outras dimensões do sujeito. P. 60.
Ø Tudo somado, aparece ao mesmo tempo que o sujeito de saber mantém com o mundo uma relação, específica, nem por isso, deixa de estar "engajado" em outros tipos de relações com o mundo. Ao contrário, é presa constante de um duplo processo, que o incita a retirar-se do mundo (em seu "lar", seu jardim, seu sótão, ou seu laboratório) e que o leva a "sitiá-lo" para entender, ordenar er dominar o Todo. O sujeito de saber não pode ser compreendido sem que se o apreenda sob essa forma específica de relação com o mundo. Em outras palavras, não se poderia, para definir a relação com o saber, partir do sujeito de saber (da Razão); pois, para entender o sujeito de saber, é preciso apreender sua relação com o saber. P. 61.
Ø Assim, J. M. Monteil (1985) dedica-se a distinguir a informação, o conhecimento e o saber. A informação é um dado exterior ao sujeito, pode ser armazenada, estocada, inclusive em um banco de dados; está "sob" a primazia da objetividade". O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivo-cognitivas; como tal, é intransmissível, está "sob a primazia da subjetividade". Assim como a informação o saber está "sob a primazia da objetividade"; mas, é uma informação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é também, conhecimento, porém desvinculado do "invólucro dogmático no qual a subjetividade tende a instalá-lo". O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos, é construído em "quadros metodológicos". Pode, portanto, "entrar na ordem do objeto"; e tornar-se, então, "um produto comunicável", uma "informação disponível para outrem".
A análise parece-me pertinente: não há saber senão para um sujeito, não há saber senão organizado de acordo com relações internas, não há saber senão produzido em uma "confrontação interpessoal". Em outras palavras, a idéia de saber implica a de sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjetivo), de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber).
As análises de J. M. Monteil, pois, vão ao encontro das de J. Schlanger (1978) que, ao interrogar-se sobre o que é saber, conclui: "não pode haver saber fora da situação cognitiva, não pode haver saber em si". O saber é uma relação, um produto e um resultado, relação do sujeito que conhece com seu mundo, resultado dessa interação". É verdade que o saber assim produzido aparece a seguir como um objeto autônomo; o que leva, por exemplo, a falar de um saber encerrado nos livros. Isso, porém, equivale a dar uma forma de substância ao que primeiro é atividade e relação. Como diz muito bem J. Schlanger, não há saber em si, o saber é uma relação. Essa relação, acrescentarei eu, é uma forma de relação com o saber. Ou, ainda: se a questão da relação com o saber é tão importante, é porque o saber é relação. P. 62.
Ø Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e relação com os outros. Implica uma forma de atividade e, acrescentarei, uma relação com a linguagem e uma relação com o tempo.
O saber apresenta-se sob a forma de "objetos", de enunciados descontextualizados que parecem ser autônomos, ter existência, sentido e valor por si mesmos e como tais. Esses enunciados, porém, são as formas substancializadas (Schlanger, 1978) de uma atividade, de relações e de uma relação com o mundo.
Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Não obstante, os homens mantêm com o mundo e entre si (inclusive quando são "homens de ciência") relações que não são apenas epistemológicas. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para constituir o saber, mas, também, para apoiá-lo após sua construção: um saber só continua válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trata de um saber que tem valo e merece ser transmitido. P. 63.
Ø se o saber é relação, o processo que leva a adotar uma relação de saber com o mundo é que deve ser o objeto de uma educação intelectual e, não, a acumulação de conteúdos intelectuais. Cuidado, porém: esse processo não é puramente cognitivo e didático. Trata-se de levar uma criança a inscrever-se em um certo tipo de relação com o mundo, consigo e com os outros, que proporciona prazer, mas sempre implica a renúncia, provisória ou profunda, de outras formas de relação com o mundo, consigo e com os outros. Nesse sentido, a questão do saber sempre é uma questão identitária, também. Entende-se melhor, assim, a profundeza das novelas que Annie Arnaux dedicou à sua história de escola (notadamente, LES ARMOIRES VIDES, (1974) e a pertinência do termo "transfuga" que J. P. Terrail utiliza para designar essas crianças de famílias populares que mudam graças ao sucesso escolar (Terrail, 1990). Ps. 64/65.
Ø Todo ser humano aprende: se não aprendesse não se tornaria humano. Aprender, no entanto, não equivale a adquirir a adquirir um saber entendido como conteúdo intelectual: a apropriação de um saber-objeto não é senão uma das figuras do aprender. P. 65.
Ø Aprender, é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com a ajuda de pessoas que ajudam a aprender. A relação com o saber é relação com o mundo, em um sentido geral, mas é, também, relação com esses mundos particulares (meios, espaços...) nos quais a criança vive e aprende. A esse respeito, não posso propor um inventário tão formalizado como aquele que acabo de elaborar no nível epistêmico; isso requer pesquisas. P. 67.
Ø Por fim, a situação de aprendizado não é apenas marcada pelo local e pelas pessoas mas também por um momento. Aprender, sob qualquer figura que seja, é sempre aprender em um momento de minha história, mas, também em um momento de outras histórias: as da humanidade, da sociedade na qual eu vivo, do espaço no qual eu aprendo, das pessoas que estão encarregadas de ensinar-me. "A relação pedagógica é um momento; isto é, um conjunto de percepções, de representações, de projetos atuais que se inscrevem em uma apropriação dos passados individuais e das projeções - que cada um constrói - do futuro". Novamente, é importante a questão: aprende-se porque se tem oportunidades de aprender, em um momento em que se está, mais ou menos disponível para aproveitar essas oportunidades; às vezes, entretanto, a ocasião não voltará a surgir: aprender é, então, uma obrigação (ou uma "chance" que se deixou passar).
Qualquer que seja a figura do aprender, o espaço do aprendizado é, portanto, um espaço - tempo partilhado com outros homens. O que está em jogo nesse espaço-tempo não é meramente epistêmico e didático. Estão em jogo também relações com os outros e relações consigo próprio: quem sou eu, para os outros e para mim mesmo, eu, que sou capaz de aprender isso, ou que não o consigo? Analisar esse ponto é trabalhar a relação com o saber enquanto relação identitária. P. 68.
Ø aprender pode ser também dominar uma atividade, ou capacitar-se a utilizar um objeto de forma pertinente. Não é mais passar da não-posse à posse de um objeto (o "saber"), mas, sim, do não-domínio ao domínio de uma atividade. Esse domínio se inscreve no corpo. O sujeito epistêmico é, então, o sujeito encarnado em um corpo, entendendo-se por isso, no caso, não um sistema de órgãos distinto da "alma", mas, sim, o corpo tal como foi definido por Merleau-Ponty. O corpo é um lugar de apropriação do mundo, um "conjunto de significações vivenciadas", um sistema de ações em direção ao mundo, aberto às situações reais, mas, também, virtuais. O corpo é o sujeito enquanto engajado no "movimento da existência", enquanto "habitante do espaço e do tempo"(Merleau-Ponty, 1945). Existe de fato, um Eu, nessa relação epistêmica com o aprender, mas não é o Eu reflexivo que abre um universo de saberes-objetos, é um Eu imerso em uma dada situação, um Eu que é corpo, percepções, sistema de atos em um mundo correlato de seus atos (como possibilidade de agir, como valor de certas ações, como efeito de atos). Assim, chamamos imbricação do Eu na situação o processo epistêmico em que o aprender é o domínio de uma atividade "engajada" no mundo. P. 69.
Ø Por fim, aprender pode ser também aprender a ser solidário, desconfiado, responsável, paciente...; a mentir, a brigar, a ajudar os outros...; em suma, a "entender as pessoas", "conhecer a vida", saber quem se é. Significa, então, entrar em um dispositivo relacional, apropriar-se de uma forma intersubjetiva, garantir um certo controle de se desenvolvimento pessoal, construir de maneira reflexiva uma imagem de si mesmo. Assim como no caso anterior, aprender é passar do não-domínio para o domínio e, não, constituir um saber-objeto. Trata-se, dessa vez, porém, de dominar uma relação e, não, uma atividade: a relação consigo próprio, a relação com os outros; a relação consigo próprio através da relação com os outros e reciprocamente. Aprender é tornar-se capaz de regular essa relação e encontrar a distância conveniente entre si e os outros, entre si e si mesmo; e isso em situação. Assim, chamamos esse processo epistêmico distanciação - regulação. Aqui o sujeito epistêmico é o sujeito afetivo e relacional, definido por sentimentos e emoções em situação e em ato; isto é - para não recorrer a algo inapreensível - o sujeito como sistema de condutas relacionais, como conjunto de processos psíquicos implementados nas relações com os outros e consigo mesmo.
Aprender, então, é dominar uma relação, de maneira que, nesse caso tampouco, o produto do aprendizado não pode ser autonomizado, separado da relação em situação. Todavia, aí também, pode-se adotar uma posição reflexiva e designar a relação. Pode ser nomeada por um substantivo: aprendi a solidariedade, o ódio, a hipocrisia, a perseverança, a confiança em mim... É amiúde posta em palavras sob a forma de princípios, de regras, cujo estatuto pode ser dos mais variados: amarás ao teu próximo como a ti mesmo; "age de maneira a sempre tratar a humanidade tão bem em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre, ao mesmo tempo, como fim, nunca, simplesmente, como um meio" (Kant, 1785); "os amigos, isso pode ser legal, mas, mais atrapalham do que ajudam" (um colegial); ou "a confiança é uma coisa da qual se deve desconfiar" (idem). Não obstante, assim como no caso anterior, a apropriação de tais enunciados não é o equivalente do aprendizado da própria relação, em situação e em ato; a prática psicanalítica confirma que a mera verbalização não pode reestruturar o sistema relacional do sujeito, o qual deve "reviver" as situações no quadro da transferência". Ps. 70/71.
Ø ... Mas qualquer relação com o saber comporta também uma dimensão de identidade: aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção da vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e à que quer dar de si aos outros.
0Toda relação com o saber é também relação consigo próprio: através do "aprender", qualquer que seja a figura sob a qual se apresente, sempre está em jogo a construção de si mesmo e seu eco reflexivo, a imagem de si. A criança e o adolescente aprendem para conquistar sua independência e para tornar-se "alguém". Sabe-se que o sucesso escolar produz um potente efeito se segurança e de reforço narcísico, enquanto que o fracasso causa grandes estragos na relação consigo mesmo (com, como eventual conseqüência, a depressão, a droga, a violência, inclusive a suicida). Em princípio, existem muitas maneiras de "tornar-se alguém", através das diferente figuras do aprender; mas a sociedade moderna tende a impor a figura do saber - objeto(do sucesso escolar) como sendo uma passagem obrigatória, para se ter o direito de ser "alguém". P. 72.
Ø Não se pense que se trate aqui de debates puramente "teóricos". Esses pontos são essenciais para entender o que ocorre em uma sala de aula. Assim, o que é uma aula que é "interessante"? será uma aula que é interessante "em si" (relação com o mundo)? Uma aula que é interessante para mim? Uma aula dada por um professor interessante (relação com o outro)? Pessoalmente eu passei horas em volta dessa questão, rastreando mínimas nuanças em discursos de alunos de liceus profissionais, e só saí do túnel graças a essa análise teórica da relação com o saber: uma aula "interessante" é uma aula na qual se estabeleça, em uma forma específica, uma relação com o mundo, uma relação consigo mesmo e uma relação com o outro. Outro exemplo: por que certos alunos, em número bastante grande, afirmam que "há anos em que eu gosto da matemática porque eu gosto do professor e há anos em que fico nulo em matemática porque eu não gosto do professor"? a relação com a matemática, nesse caso, está na dependência da relação com o docente e da relação do aluno consigo mesmo (ele diz "eu gosto"): a relação com o mundo depende da relação com o outro e da relação consigo. Está claro que as questões aqui imbricadas são ao mesmo tempo epistêmicas e de identidade. Ps. 72/73.
Ø Queria lembrar, por fim, que "o mundo", "eu", e "o outro" não são meras identidades. "O mundo é aquele em que a criança vive, um mundo desigual, estruturado por relações sociais. "Eu", "o sujeito", é um aluno que ocupa uma posição, social e escolar, que tem uma história, marcada por encontros, eventos, rupturas, esperanças, a aspiração a "ter uma boa profissão", a "tornar-se alguém", etc. "O outro" são pais que atribuem missões ao filho, professores que "explicam" de maneira mais ou menos correta, que estimulam ou, às vezes, proferem insuportáveis "palavras de fatalidade". Não há relação com o saber senão a de um sujeito. Não há sujeito senão em um mundo e em uma relação com o outro. Mas não há mundo e outro senão já presentes, sob formas que preexistem. A relação com o saber não deixa de ser uma relação social, embora sendo de um sujeito. P. 73.
Ø A relação com o saber é uma forma da relação com o mundo. P. 77.
Ø A criança não é um objeto incompleto situado em um "ambiente" (um conjunto de outros objetos em torno dela). P. 77.
Ø Mas "a influência" não influencia senão quem se deixa influenciar por essa influência... um evento, um lugar, uma pessoa produzem efeitos sobre tal indivíduo sem por isso surtir obrigatoriamente um efeito sobre o outro indivíduo, que apresenta no entanto as mesmas características objetivas. P. 77
Ø A relação com o saber é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros. P. 78.
Ø O mundo é dado ao homem somente através do que ele percebe, imagina, pensa desse mundo, através do que ele deseja, do que ele sente: o mundo se oferece a ele como conjunto de significados, partilhados com outros homens. P. 78.
Ø O homem tem um corpo, é dinamismo, energia a ser despendida e reconstituída; o mundo tem uma materialidade, ele preexiste, e permanecerá, independentemente do sujeito. P. 78.
Ø ... a relação com o saber é relação com o tempo. A apropriação do mundo, a construção de si mesmo, a inscrição em uma rede de relações com os outros - "o aprender" - requerem tempo e jamais acabam. P. 78.
Ø A relação com o saber é o próprio sujeito, na medida em que deve aprender, apropriar-se do mundo, construir-se. O sujeito é relação com o saber. P. 82.
Ø Com efeito, o sujeito pode ser definido também como um ser vivo "engajado" em uma dinâmica do desejo; e, nesse caso, ele será estudado como conjunto de processos articulados. O sujeito está polarizado, investe num mundo que, para ele, é espaço de significados e valores: ama, não ama, odeia, procura, foge...
Ø As idéias, as emoções, até as percepções, por mais pessoais que sejam, estão ancoradas no social. eu penso com idéias e palavras que devo a toda a história da humanidade, eu amo segundo formas que foram construídas pela literatura e pela televisão, eu percebo um único tipo de branco onde os latinos percebiam dois. P. 84.
Ø A relação com o saber se constrói em relações sociais de saber, mostrá-lo, analisar suas modalidades e seus processos talvez seja a tarefa específica de uma sociologia da relação com o saber. P. 86.


Um comentário:

Laís disse...

Parabéns pelo fichamento. Muito bom!